O romance perdido (e reencontrado) de Céline

Em agosto de 2021 o jornal Le Monde anunciou a descoberta de milhares de páginas manuscritas inéditas do escritor francês Louis-Ferdinand Céline. Dentre elas, inclusive, o primeiro tratamento de um romance inteiro, chamado Guerre (Guerra), de 1933 – publicado no mês passado pela editora Gallimard.

Esses manuscritos haviam desaparecido em 1944 e, pelo que se sabe, tiveram uma aventura rocambolesca, atravessando esconderijos secretos, malas perdidas, detetives e guardadores inexpugnáveis. Uma descoberta que teve o efeito de um tempestade (un coup de tonnerre) no céu da literatura.

Céline (1894-1961) foi um escritor genial, mas de posições políticas chocantes: anti-semita, amigo da ultra-direita e colaboracionista com o regime nazista, durante a invasão da França. Se é fácil ficar maravilhado por seu texto, é difícil tolerá-lo como pessoa.

Seus romances Voyage au bout de la nuit (1932) e Mort à crédit (1936), são obras primas, uma literatura existencialista que dialoga em permanência com a filosofia – ainda que a desdiga, a desqualifique, em permanência, como se vê no seguinte trecho de Entretiens avec le professeur (1955):

« J’ai pas d’idées moi ! aucune ! et je trouve rien de plus vulgaire, de plus dégoûtant, que les idées ! les bibliothèques en sont pleines ! et les terrasses des cafés !… tous les impuissants regorgent d’idées !… et les philosophes !… c’est leur industrie les idées !… »

(Eu não tenho ideias! Nenhuma! E não vejo nada de mais vulgar, de maior mau gosto, do que as ideias! As bibliotecas estão cheias delas! E os terraços de cafés!… Todos os impotentes transbordam e ideias! … E os filósofos!… É uma indústria de ideias que eles têm!…)

Não é de admirar que o primeiro núcleo de ideias que influenciou Céline foi a obra dos grandes moralistas franceses (La Rochefoucauld, Chamfort, Vauvenargues, La Bruyère…), que os cita abundantemente, notadamente nos Cahiers de prison. O escritor partilha, deles, o seu rigoroso pessimismo antropológico – o que levou Walter Benjamin a qualificar a obra de Céline como um “nihilismo antropológico”. O que significa isso? Que a literatura de Céline produz uma visão do mundo pessimista, que não para de denunciar as aparências da virtude, a vaidade do homens, o ridículo da existência, a impotência da imaginação, o egoísmo universal dos seres…

O ser humano, visto por Céline, é uma criatura miserável e desesperada, confrontado eternamente ao absurdo da sua própria existência. Não podendo alcançar o projeto da virtude, da beleza e da bondade que entrevia como a sua própria salvação, o ser humano acaba se lançando numa existência marcada pelo desespero existencial. E tudo se torna ainda pior quando o indivíduo ganha consciência de que está condenada a conviver com essa permanente dissolução de si mesmo – e aqui entra outro aspecto central da obra de Cline: a metáfora médica do cadáver, do corpo que começa a apodrecer ainda em vida.

O homem de Céline é um indivíduo já em decomposição, condenado à insignificância, ao apodrecimento, à pulverização. E, pior ainda, sem esperança de que se torne real a grande ficção de que tem uma alma…

E com isso retornamos ao Céline filósofo. Suas influências? Schopenhauer e Nietzsche, evidentemente, mas também Bergson, com sua reflexão sobre a temporalidade. De Nietsche encontra-se ecos muito fortes na obra de Céline: a imagem da fraqueza dos pequenos homens, , a denúncia do ressentimento e do nihilismo passivo…  

Finda a II Guerra, Céline passou a ser perseguido nos seu país. Seu colaboracionismo com os alemães não foi e não deveria ter sido perdoado. Seguem-se cinco anos de exílio na Dinamarca e, em seu retorno, retira-se em uma vida de silêncio numa casa rural, em Meudon, onde escreveu Nord (1960) e Rigodon (1969).

Guerra, o romance encontrado, foi lançado dia 22 de maio passado. Para o grande evento, a Gallimard fez uma primeira de edição já com 80 mil exemplares – número significativo, mesmo na França.

Autor: Fábio Horácio-Castro

Escritor, jornalista, pesquisador, sociólogo, etnógrafo, fenomenólogo, professor. Sou também Fábio Fonseca de Castro e Fábio de Castro da Gama. Conforme a ocasião, o nome.

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