O viajante literário em Londres 4: Tennyson e Thackeray

Prossigo meu turismo literário em Londres. Parto a 9 Upper Belgravia Street, Belgravia, onde morou Alfred Tennyson (1809-1892). Conhecia bem o percurso, um de meus caminhos eventuais, numa região de boas pies and pints.

Tennyson. Cantabriano, platônico, assonante, atormentado Tennyson…

Efetivamente, fui conhecê-lo em Londres, lendo algo a seu respeito num jornal quotidiano. Fui ler sua obra mais falada, In Memoriam A.H.H., esse longo poema, escrito durante 17 anos, em homenagem a seu amigo, condiscípulo em Cambridge, Arthur Henry Hallam, noivo de sua irmã, falecido precoce e repentinamente de uma hemorragia cerebral.

Um poema estranho, mas que se torna compreensível em seu contexto e em seus propósitos: questionar a sociedade vitoriana e colocar em pauta os grandes temas da liberdade humana, inclusive a sexualidade, principalmente o tabu da homossexualidade, e, igualmente, a questão do agnosticismo. Não vamos, porém, atribuir-lhe bandeiras que ele não defendeu, mesmo porque era outro o contexto cultural.

No que tange ao seu agnosticismo, deve-se reconhecer haver, em Tenysson, uma relação dominante com o mundo natural, uma dinâmica ancestral que ele herda, muito forte na formação histórica da Inglaterra, de relação com a natureza. Isso produz um panteísmo de ordem mítica, sempre presente na sua escrita e isso afora a pura crítica da fé, na sua forma religiosa: “Existe mais fé na dúvida honesta (…) que em metade das religiões”, diz ele. 

Já no que tange à questão do homoerotsimo, é preciso perceber que no tempo de Tenysson ainda não havia, ao menos na Inglaterra, a associação da homossexualidade como uma figura identitária e social específica. Ademais, sabe-se muito a respeito da longa (de séculos) influência do platonismo cantabrígio (ou seja, referente à Universidade de Cambridge), concebido como amor casto, mas de devoção, entre os alunos dessa instituição.

Lí com muito interesse o poema The Charge of the light brigade – embora menos pela música de Iron Maiden de que pela Guerra da Criméia, sempre interessante para quem estudou comunicação. Nunca palavras inicias lembraram tanto o galope de cavalos partindo para o ataque, ainda crentes na vitória:

Half a league, half a league,

Half a league onward,

All in the valley of Death

Rode the six hundred.

Digam se a sonoridade desses versos não produzem galopes num campo de batalha. Tennyson ecoa Keats, como se sabe, contempla a natureza, busca a musicalidade da palavra, evoca as lendas do campo e da floresta e alitera tudo o que pode.  E nunca houve poeta mais assonante do que ele.

Bom, para concluir, há a mushroom pie do The Alfred Tennyson Pub, ali perto, no 10 Motcomb St. Experimentei-a depois da visita a sua casa.

E, não distante dali, alcancei 16 Young Street, Kensington, onde viveu o grande, o sensacional, o intrigante William Makepeace Thackeray (1811-1863) – que de fazedor de paz, apesar do nome, não possuía muito. Fachada térrea em branco, pavimento superior feito daquelas pedras que imitam tijolos, tão comum na vizinhança e a casa em frente a um pequeno parque de bairro. Mais tarde visitei sua morada posterior e eterna, seu túmulo em Kensal Green, o cemitério gótico londrino, vizinho de minha casa nessa cidade.

Bom, o que me interessa em Thackeray é sua influência sobre Machado de Assis. Uma influência discreta e mediada, certo, mas decisiva no que tange a “princípio da reserva” – depois explico.

Deixem que reúna elementos, antes, para explicá-lo. Em seu tempo, quando alguém se matriculava em Cambridge, seu nome era escrito num grande livro e seguido, quando não se vinha de uma linhagem nobre, com um cortante termo latino que excedia pela mácula: ne nobilitate. Creio que Thackeray observou profundamente essa marca de identidade, essa e outras, e que isso está na base da sua literatura. A Fogueira das Vaidades é um monumento discreto da desconstrução e à crítica da pretensa nobilitate. Nesse e em outros livros, a sua ironia é devastadora, e mais ainda porque possui reservas. Ah, as reservas de Thackerey… Ao não dizer tudo, diz mais ainda.

É assim que vejo a obra de Thackeray, como uma arte de eloquentes reservas.

Um outro exemplo mais formal e técnico disso ocorre quando o romance começa fazendo crer que sua personagem principal, em torno da qual a história caminhará é Amélia Sedeley, ou melhor Emily, como todos a chamam. Seguimos sua história e, lá pelas tantas, repentinamente, o narrador se dá conta de que “she wasn’t a heroine“. After all, after all… E Emily sai do centro, que passa a ser ocupado por Beck Sharp, o oposto da insossa Emily.

Penso que Thackay alegoriza, com essa mudança de foco narrativo, o próprio espírito do disse-me-disse, da fogueira das vaidades que sustenta seu romance. Quando li esse romance eu devia ter uns quinze anos de idade e achei essa mudança de foco narrativo um erro grotesco, uma vulgaridade literária inominável, mas hoje percebo do que Thackeray realmente estava falando.

Aos quinze anos acreditamos na voz que narra uma história e desacreditamos das vozes que narram essa voz narradora. Recordo que li com imensa má vontade o restante do livro e até acho que não cheguei a concluir a leitura. Não estou certo disso, mas tenho certeza de que pulei páginas e páginas, achando Thackeray um contra-autor, um des-autor, um canalha. Hoje, um pouco mais maduro, compreendo bem a sutileza do seu estilo e recuperei meu respeito por ele.

E, isto dito, voltemos ao que acima chamei de “princípio da reserva”. Trata-se daquilo que permite ao autor de se calar, repentinamente, depois de reunir os elementos para que as coisas sejam compreendidas. Trata-se do vai-de-si dos fatos agregados. Talvez, a diegese. Talvez, a hantologia.

Hoje acredito que a literatura mais incrível que há é a que fala das narrativas e dos silêncios que narram os fatos e os ruídos. Uma forma de prudência, de discrição, de generosidade mas, também… de ironia. E é por isso que compreendo o quanto Thackeray ecoa em Machado de Assis: ambos foram ne nobilitatem. Ambos possibilitaram os elementos para que o futuro implodisse o passado.

E ambos me fazem pensar a respeito de como a literatura é, em resumo, um dispositivo para que, sugerindo (ainda que discretamente) o presente, permita que o futuro imploda o passado.

Num tempo em que muitos autores supõem que dizer é explicitar, esclarecer, objetivar, mostrar, exibir, há uma grande lição na literatura de Thackeray (e de Machado de Assis): a literatura, antes, sugere, pisca os olhos, toca discretamente com uma pena.

Autor: Fábio Horácio-Castro

Escritor, jornalista, pesquisador, sociólogo, etnógrafo, fenomenólogo, professor. Sou também Fábio Fonseca de Castro e Fábio de Castro da Gama. Conforme a ocasião, o nome.

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