Caros, informo que vou parar de atualizar este blog neste momento. Seguindo as tendências de leitura, vou substituí-lo por uma newsletter literária, que deve começar a circular em janeiro de 2023. O leitor a assina e a recebe automaticamente, com uma frequência pré-determinada. Penso que isso facilita a leitura e também a escritura. Eventualmente, manterei o blog replicando a newsletter – vou pensar nisso. Grato pela “audiência”.
Estarei num bate-papo com Diogo Monteiro na próxima 4a, dia 6/7, às 16:30, no estande do Sesc, na 26a Bienal de Literatura de São Paulo – numa programação que reúne vários autores lançados pela Editora Record, presentes em todos os dias do evento. O Diogo e eu vamos falar de nossos livros, literatura, escrita e do que rolar.
Fábio Horácio-Castro O réptil melancólico Record • 384 pp • R$ 54,90
Preocupado em resgatar o valor estruturante dos mitos e dos ritos, Claude Lévi-Strauss refuta a premissa que os despreza como acidentais ou casuais em relação ao conhecimento humano acumulado. Para o antropólogo francês, antes da ciência moderna e de sua métrica de validação, as práticas de observação, experimentação e reflexão informavam as comunidades. Marco nas ciências sociais, o conceito de bricolage para Lévi-Strauss é esse fazer científico “primeiro” (designação preferida por ele, em vez de “primitivo”).
Lévi-Strauss contrasta o labor do bricoleur ao de um engenheiro. O engenheiro é refém de suas matérias-primas e de um ferramental preconcebido. O bricoleur executa tarefas com “um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentam para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores” (Lévi-Strauss, O pensamento selvagem).
O réptil melancólico, romance de estreia de Fábio Horácio-Castro
Lembrei-me do antropólogo francês ao ler O réptil melancólico, romance de estreia de Fábio Horácio-Castro (heterônimo de Fábio Fonseca de Castro, professor na Universidade Federal do Pará). Como uma bricolagem que conecta o conhecido com o incógnito que não pode ser aprendido de forma usual, seu posicionamento de elementos de forma entrelaçada revela novos significados. Ao contrário de um engenheiro cujo projeto tem começo, meio e fim, e que usa matérias-primas e ferramentas com racionalidade utilitarista, a narrativa de Horácio-Castro percorre caminhos imprevistos, que mostram acasos e em que se apresentam desvios. Sua escrita não domesticada brinca conosco, leitores, mudando a narração e os cenários, retirando aspas, pontos e vírgulas para costurar diálogos ficcionais com pensamentos. Faz nos movermos por rastros entre fissuras, como seus répteis. Como literatura que arrisca, teve seus acertos reconhecidos pelo Prêmio Sesc de Literatura 2021 na categoria romance.
O duplo processo de violência, colonial e ditatorial, rasga os laços sociais dos personagens
A história de O réptil melancólico tem como pano de fundo um passado distópico. Ao contrário do resto do Brasil, que conseguiu sua independência de Portugal no começo do século 19, o estado do Grão-Pará permaneceu colônia portuguesa. Sua descolonização ocorreu somente na década de 60, enquanto lutas pela independência também eram travadas na África. Mas, em vez de se tornar um estado independente, o Pará foi anexado pela ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964. O duplo processo de violência, colonial e ditatorial, rasga os laços sociais dos personagens e embaralha suas identidades. O livro tem como ponto de partida o exílio, condição transitória decorrente da brutalidade sofrida por quem se opôs à ditadura e que o situa num espaço-entre. A história inicia, assim, com um não lugar ou um entre-lugares, que se instaura entre aquele aonde se vai e de onde se vem.
Felipe e sua mãe vivem na Europa, que recebe os exilados políticos do autoritarismo brasileiro. Felipe carrega consigo uma batalha de imaginações: aquelas construídas pelos outros exilados de uma terra que ele não conheceu, as suas próprias, de uma vida que poderia ter sido. Entre relatos de tortura e fábulas amazônicas, ele fantasia a cidade onde nasceu e que não vivenciou. Deixa sua mãe, que perdeu o desejo de retornar, e busca sua família paterna, que o acolhe, em especial seu primo Miguel. Na contramão de Felipe e desencantado com sua cidade, Miguel prepara sua partida para a Europa. A narrativa caminha entre desencontros que revelam novos achados.
A trama da obra atravessa e é atravessada por alegorias amazônicas. Criaturas reptilianas se alternam na história: um lagarto reflete sobre o destino dos homens, um ghoûl explica mistérios aos humanos, um dragão de pedra assume a narração. Como bestiário, o livro compila reptilianos que observam, dialogam e narram.
Cidades, casas e ruas compõem os arcos que sustentam a história e são percorridos por seus répteis. Os lugares refletem as sensibilidades dos protagonistas. Como condição de ontologias, os espaços sustentam os afetos dos personagens, como seus sentimentos de pertencimento. Outros lugares parecem independer dos seus visitantes, como a casa do Anfão, com seus mortos e seus répteis.
Em nenhum lugar do livro se menciona expressamente que parte significativa da história se passa na cidade de Belém; todavia, a mesma insistência em não nomeá-la marca as pistas sub-reptícias que não deixam dúvidas de que se trata dela. A cidade amazônica por vezes oferece condições para as ações e os pensamentos de Felipe ou Miguel; por outras, aparece como persona própria. Se a nomeação ordena o caos, a Belém inominada libera possibilidades restritas.
Vingando-se da história
É comum uma mudança de lugar nos fornecer outra perspectiva quando retornamos ao ponto de partida. Uma temporada em outra cidade pode despertar novos olhares sobre o que antes era habitual. Em O réptil melancólico esse exercício não se dá apenas nos espaços, mas também no tempo.
Ao partir de uma distopia do passado, o livro possibilita outro engajamento com nossa história. Colonização e ditadura formam um contínuo: a maior parte da população aceitou a passagem de colônia portuguesa para colônia brasileira, de um governo medíocre para outro. Histórias locais foram domesticadas, e a maioria reproduziu mimeticamente a autocolonização. Dos dissidentes, a tortura e o exílio dilacerou suas identidades.
Com essa mudança distópica, processos profundamente violentos que rasgam os tecidos de pertencimento são desnaturalizados. Como leitores, conseguimos senti-los na pele como são: não naturais, impostos e construídos. Ao evidenciar a correlação colonial-ditatorial, O réptil melancólico vinga-se da história, reimaginando-a, menos pelo que ela poderia ter sido, mais por fazer o leitor ver processos obscurecidos. Ao fazê-lo, ilustra algo que a literatura acadêmica pós-colonial tanto afirma: as reminiscências da violência colonial não ficaram inertes no passado, mas informam práticas do presente.
“Minha experiência não era a de uma utopia, mas a pragmática de uma condição eternamente colonial e de eterna duplicidade a respeito de minhas origens. Tenho a experiência, portanto, da condição colonial. Quando nasci, minha cidade já não era, ao menos na condição que lhe davam, uma colônia portuguesa. Tornara-se uma colônia brasileira. Minha cidade e o imenso território colonial a que ela dava capital, essa província de florestas e de mares doces, rica e despovoada, da qual se proíbe que se diga o nome e que, como as colônias de África, desde os anos 1960, fazia irridência e desejava a independência, fora, enfim, cedida ao Brasil, exigência antiga desse país e que remontava ao século XIX, justificando-se por uma pretensa integridade territorial que, por lá, diziam histórica”.
Trecho de O Réptil Melancólico. Editora Record, em livrarias de todo o país.