Nos rastros do Réptil 2

A artificialidade não conduz ao artifício. E nem o contrário. Apesar da aparência entre os termos, eles levam a coisas diferentes e até opostas. A artificialidade, o artificial, pretendem à factibilidade, e, por isso, evocam a aparência. Demandam a ambivalência e namoram a aparência.

O artificio, por sua vez, pretende ao caminho. O artifício é fático. Não é um juízo de valor e não é um dispositivo da ética. É um instrumento operador de antídotos para os venenos da artificialidade. A função do artifício é desvendar e eventualmente desmascarar, a artificialidade.

A artificialidade é ornamento, embelezamento, enquanto o artifício, como nos diz Baudelaire, “n’embelli(t) pas la laideur et ne (peut) servir que la beauté”.

O artifício desconstrói a artificialidade, tal como o relativo e a teoria da relatividade desconstroem o relativismo. Na mesma medida, uma coisa é a máquina, e outra, a maquinação. Na mesma medida, os dispositivos cênicos do teatro despem e desvelam as cênicas e a teatralidade da vida e da alma das pessoas e dos mundos.

Da mesma maneira procede a alegoria. A alegoria é um dispositivo fático que foge da ética e dos juízos para desvelar o mundo.

Nos rastros do Réptil 1

O tema do exílio, claro, é central no livro. Exílio tende a dizer uma experiência de atopia, a ausência de espaço, mas essa experiência não existe, de fato, sem uma paralela acronia, a ausência de tempo. Viver longe do seu lugar é, também, viver sem acompanhar o tempo do seu lugar.

Essa dialogia evoca Bakhtin e seu bem conhecido conceito de cronótopo – o tempo-espaço como unidade de análise da criação literária – mas apenas como um referente. Para dizer o exílio, com sua atopia e acromia co-referentes, o cronótopo não faz sentido. Seria preciso algo como uma acronotopia. Todo exílio é acronotópico.

Certo, também se poderá ver, aqui, a ideia de cronótopo, porque, dirão, a cronotopia não deixa de ser uma acronotopia – à medida em que idealiza um não-lugar e uma não-temporalidade que, pela via da enunciação acabam por se tornar lugar e temporalidade. Mais ou menos. O conceito de temporalidade, em Heidegger e em outros filósofos, não concebe temporalidade como uma experiência do tempo físico, tal como o ser não é, simplesmente, um sujeito e o lugar não é, simplesmente, um espaço. Eis o caminho e a pista. Ademais, cabe lembrar que a acronotopia produz, igualmente, uma acromia: a ausência de tez, a ausência do rubro tempo e da vida coetânea. E por isso, o cronótopo não explica tudo, não explica o traço, o rastro, a ausência.