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Cartas ao leitor 3: Tratar-se com Sêneca em tempos dostoievskianos

Pueblo de mi comunidad,

Afetos a todos e todas,

Ahahah, começo rindo, mas um pouco alarmado. Avança a ameaça Omicron, certo, e eu aqui, novamente com Covid, pensando na febre de Petrov. Pior: rindo quando lembro de Dostoievski. Sinal de tempos estranhos: quem pode rir, quando lembra de Dostoievski? Quem pode rir, tomado pela Covid? É minha segunda contaminação, mas felizmente as três doses da vacina, que já tomei, a tornam rarefeita. Padeço menos e depois de quadro dias os males começam a partir. Sobra o estranho mundo.

Sim, o mundo anda muito estranho; inclusive eu, que estou dentro dele, ando estranho. Provavelmente não se ri do mundo, nestas circunstâncias. Provavelmente. O que confirma que continuamos estranhos, dentro de tempos estranhos.

É que vi, por estes dias, o filme A febre de Petrov, do cineasta russo Kirill Serebrennikov. Um filme que fala de pandemias. Não da Covid 19, até porque ele foi feito há uns 20 anos.

Adaptado de um romance de Alexeï Salnikov, conta a história de uma homem doente e solitário que se trata com… vodka. Sim, a bebida que não tem gosto e que, como se diz, é a bebida ideal para quem não gosta de beber.

E isso tem a ver com Dostoievski. Tudo remete a Fiodor Dostô, tanto nesse filme como nestes tempos estranhos – cabendo lembrar que, em 2021 celebraram-se os 200 anos de seu nascimento.

Tal como nas obras de Dostô, há medo, desilusão, nervosismo, falta de ar e o entrever da canalhice humana.

Vivemos tempos incertos e dostoievisqueanos. E é nervoso esse riso que ri de nossos tempos.

Como todas as vezes em que li Dostô precisei de uma dose de Sêneca (pois nenhuma vodka seria suficiente para resolver essas coisas), desta vez, outra vez, corri para o meu amado Sêneca, mestre das minhas incertezas existenciais.

Façamos silêncio, com Sêneca. E vamos, até mesmo, parar de rir.

Sim, é difícil. Como avisa o filósofo, nenhum silêncio se conquista com luta, seja porque o universo é ruidoso, seja porque nós, humanos seres, tendemos a ser mais ruidosos até mesmo que o universo. Segundo Sêneca, o barulho está na nossa natureza mais profunda.

Sigamos seus conselhos e vamos, primeiramente, escutar o silêncio que habita a nossa profundidade. Silêncio não é não dizer, é ouvir o outro e ouvir em paz o barulho do mundo.

Em seguida, aprendamos a impor, sem nenhuma violência, o silêncio aos outros. Por mais que isso seja difícil na cidade de Belém, que se bate e se agita na pulsão natural do universo… Por mais que isso seja difícil no Brasil de Bolsonaro, que quer não escutar o outro e nem o universo…

Desistamos…

Somos seres contraditórios. Para nós, a literatura é por vezes silêncio; e, por vezes, ruído….

Boa semana a todxs.

Domingo reverso

A gente acaba perdendo a paciência. Eis que a Folha de São Paulo publica (mais) um artigo sobre “racismo reverso”. Desta vez um texto do Antonio Risério, intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo“.

E ainda querem que acreditemos que há inteligência crítica na grande imprensa brasileira.

“Racismo reverso”, ou melhor, racismo de negros contra brancos, é uma ficção do fascismo brasileiro. É uma fantasmagoria irrisória. Poderia dizer que é patética, porque não se sustenta, mas é preciso dizer que, na verdade, é canalha e cruel, porque visa a renovar e, portanto, a perpetuar, a opressão racista. Me dei ao trabalho de ir ler esse artigo. Um monte de frases soltas, reunidas para chamar atenção para o termo. O autor é um antropólogo sem antropologia. O jornal dispensa o jornalismo. Só o racismo resta efetivo.

“Racismo reverso” não existe, nunca existiu e, simplesmente, não pode existir. Não pode existir porque o racismo é um instrumento de controle, de opressão e de submissão ideológica produzido no contexto de uma luta de classes que, na história do Brasil, sempre significou o controle dos negros pelos brancos. Estruturalmente, nunca houve negros oprimindo brancos, e é por isso que não se pode falar nesse disparate. Dizendo de outra maneira, “racismo reverso” é apenas mais uma forma de racismo.

Sem nenhuma surpresa, percebemos que o autor, branco, não tem um único exemplo, uma única experiência pessoal de ter sido vítima de racismo reverso para contar.

Eu, que sou branco, também não teria um único exemplo a dar, mas poderia oferecer milhares de exemplos de como o racismo me foi oferecido, pela sociedade em que vivo e da maneira mais indigna possível, como instrumento de poder.

A Folha também não tem um único exemplo a dar de “racismo reverso”. O que ela quer é oferecê-lo como instrumento de poder a uma sociedade já bestializada.

O que a Folha quer é, apenas, re-legitimar o velho mote de que o Brasil é uma “democracia racial”, uma das maiores autoficções da inteligência brasileira, em todos os tempos.

Toda solidariedade aos movimentos negros. Vamos trabalhar para destruir essa falácia.

Thiago de Mello (1926-2022)

O poeta Thiago de Mello, falecido ontem, aos 95 anos, em Manaus, foi um paradigma da literatura amazônica – e da brasileira. Na verdade, foi uma voz latino-americana e, talvez, também dela um paradigma. Da literatura amazônica, em primeiro lugar, porque foi com ele que se consolidou a noção de “poesia das águas”, ou de “pátria das águas”, tão importante para a sensibilidade literária na região, nas últimas décadas.

Paradigma, também, da literatura brasileira, e não apenas por sua importância na literatura amazônica (que não é a mesma coisa), mas por seu militantismo e sua politização. Como muitos de sua geração, Thiago de Melo soube aproximar poesia de política. Tornou-se uma voz maior, poderosa e catalizadora, da resistência de esquerda. A publicação do poema “Os Estatutos do Homem“, no calor da imposição do Ato Institucional Número 1 (AI-1), em abril de 1964, constituiu um dos mais importantes impactos de uma poesia sobre sociedade brasileira. Algo que só acontece muito raramente e mais raramente ainda quando se constitui como impacto popular, crítico e político.

O poema, escrito quando Thiago de Mello já estava no exílio chileno, teve o peso de um manifesto pela razão humana e a favor da solidariedade universal.

Justamente outra constante da sua obra e aquela que o torna, ainda, um paradigma da América Latina. Thiago de Mello foi uma das vozes principais da integração e da cooperação latino-americana e revestiu-a com uma perspectiva amazônica que resta muito forte – afinal, o bioma amazônico integra mais países latino-americanos de que qualquer outro bioma do continente.

Sua poesia esteve sempre a serviço da questão ambiental, da atenção para com a condição humana e das grandes causas e direitos sociais. E isso não quer dizer foi “produzida” para essas causas, mas sim que traduzia os mundo que essas problemáticas desvelam ou obscurecem.

Importante definição da sua visão de poesia Mello deu-a num depoimento ao DOI-Codi, no final de 1977, logo depois de retornar ao Brasil. Disse aos militares que acreditava na “conscientização da massa” por meio da “poesia revolucionária”. Ato contínuo, foi classificado, pelo coronel que tomava o seu depoimento como “delinquente confesso”.

Recomendo a leitura da entrevista que Thiago de Mello concedeu a Rôney Rodrigues, republicada ontem no site Outras Palavras e também a crônica de Bernardo de Mello Franco, em O Globo, sobre a sua prisão, no episódio famoso dos “8 da Glória”.

O viajante literário em Londres 2: Coleridge e Keats

Prosseguindo minhas cartografias literárias em Londres, iniciadas na semana passada, confesso que busquei, em vão, a casa onde viveu Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). Contaram seus biógrafos que ele habitou em Soho, 71 Berners Street. Fácil de achar e de chegar. Fui até lá, olhei, vi, procurei e não achei. Respirei os ares contíguos e fui embora. Pouco, mas o que era possível. De fato, não tinha a plaquinha azul, mas a encontrei, dias depois, por completo acaso, em outro endereço: 7 Addison Bridge Place, em South Kensington. Sim, é bem verdade que as pessoas moram em mais de uma casa ao longo da vida… E também soube que havia um terceiro endereço, a sua casa principal, no Devonshire, e que ela estava à venda! Era o Coleridge’s Cottage, 10 quartos, uma huge library, e 21 acre grounds. 7 milhões de £ibras. Aliás essa casa ainda não foi vendida e segue disponível, como acabo de perceber, e se alguém se interessar, podem vê-la aqui.

Not by any means, é claro. E nem pensar, também, em ir tão longe só para dizer que fui até lá, mas não importa. De resto, amo Coleridge. Colored, como seu nome me vinha à imaginação, numa vã promessa diegética, era para mim sinônimo de aventuras ultramarinas – Itália, Mediterrâneo, Marrocos, Índia… Não tanto, porque isso ficava como traço, na diegese projetada, porque Coleridge está, mesmo, mais para a Inglaterra brumosa e gótica.

Mas sabem do que gosto mais em Coleridge? Do fato de ele passar da política à ficção, e da ficção à poesia, e da poesia ao teatro e da lá ao jornalismo…

A obra que mais gosto de Coleridge? Fácil: The Rime of the Ancient Mariner, que conheci, olhem só como a leitura traça seu destino, depois que ouvi a música que a banda Iron Maiden fez dele – coisa que pode parecer improvável. Mas que é.

Curioso: acho que esse poema vinha de antes, mas não lembrava de tê-lo lido. Era como se ele me acampanhasse, parecia uma história de marinheiro de meu avô… Upon a painted ocean… day after day.

The Rime of the Ancient Mariner sempre me lembra Le Bateau Îvre, de Rimbaud… tal como os mares de meu avô. Ah e aquela canção francesa, Il était um petit navire, qui n’avait ja ja jamais navigué… Coleridge lembrava tantas coisas marítimas… Lembra tanto os mares de Mazagão, o mar Doce por eles trocados, as memórias de turbulentas navegações da família de minha mãe…

E de Coleridge a Keats.

Gosto menos de John Keats (1795-1821), que viveu em 10, Wentworth Place, Hampstead. Hoje, mais conhecida como 10, Keats Road, Hampstead. Norte de Londres. É a Keats House, que pode ser vista, para uma visita virtual, neste site, mas é bom avisar que ele nunca foi proprietário desse prédio, apenas viveu lá durante dois anos, em dois pequenos cômodos no térreo do imóvel. Ao longo de toda a vida Keats teve dificuldades financeiras e a tuberculose pleural que o matou, aos 25 anos, se deveu indiretamente a elas, constando a precariedade de sua alimentação e do aquecimento da casa.

O endereço é aberto ao público, mas estava fechado para reformas, quando andei por lá. Desconsolado, comprei suas poesias completas num sebo de Londres, mas meu filho Pedro leu-o mais que eu, acho. Keats é brilhante, mas na minha compreensão falta-lhe sal, sal de mar. Não alcanço a sua famosa sensualidade.

Passo batido por Keats. Talvez porque só consiga pensar em Keats junto com Byron e Shelley. Talvez porque ainda não tenha lido Keats realmente. Talvez porque, havendo sabido do impacto de Keats sobre Borges – e Borges é Borges – fiquei aguardando, sozinho, que algo acontecesse…

Mas nada, nunca, aconteceu.

Bom, verdade seja dita, Keats me acompanha, mesmo sem sal, desde que, indolente, peguei um livro dele na biblioteca da Universidade de Brasília, no remoto ano de 1993, e fui lendo, treslendo e acabei extraindo dele uma das epígrafes do meu livro A Cidade Sebastiana. Verdade seja dita, adoro Endymion, que lindo poema… que me forneceu uma epígrafe como…

A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness

Mencionei ao professor Benedito Nunes que essa epígrafe traduzia tudo o que eu desejava dizer em A Cidade Sebastiana e ele, sempre generoso (embora também condescendente e tendo mais o que fazer) não discordou.

Mas ainda não mereci Keats, suponho, como devia.

Eve Babitz e Joan Didion: feminismo, sarcasmo e antipatriarcalismo

Dezembro tirou deste mundo duas mulheres jornalistas brilhantes e que foram decisivas para desconstruir o patriarcado norte-americano: Eve Babitz (1943-2021) e Joan Didion (1934-2021).

Eve Babitz faleceu em decorrência da doença de Huntington no dia 17 de dezembro. Foi artista visual, mas, sobretudo, a mais importante cronista de Hollywood. Publicava seus artigos em revistas prestigiosas, como a New York Review of Books, a Rolling Stone e a The Village Voice, dentre outras. Também  publicou muitos livros, como Eve’s Hollywood (1974), Slow Days, Fast Company (1977), Sex and Rage (1979), Black Swans (1993), Two by Two (1999) ou I Used to Be Charming (2019).

Eve Batiz, imagem do site The Paris Review

Era autora de uma prosa vibrante e sarcástica, profundamente sarcástica. Começou a carreira conhecida como afilhada de Igor Stravinsky, de quem os pais eram íntimos e se tornou hiper conhecida quando, aos vinte anos, o reconhecido fotógrafo Julian Wasser a fotografou nua, jogando xadrez com Marcel Duchamp.

Quando tinha 54 anos acidentou-se gravemente, quando, enquanto dirigia, sozinha numa estrada, o cigarro que fumava pôs fogo à sua saia de nylon.

No dia 23 de dezembro do ano passado, morreu, também, aos 87 anos, vítima do mal de Parkinson, uma grande jornalista norte-americana, Joan Didion, símbolo do New Journalism e da contracultura da costa Oeste norte-americana. Era autora de centenas de artigos nos jornais e revistas mais importantes dos Estados Unidos, de cinco romances e de dois volumes de memórias, “O Ano do Pensamento Mágico”, no qual descreveu a morte do marido e “Noites Azuis”, sobre a morte da filha. Didion recebeu doutoramentos honoris causa por Harvard e Yale e, tambéme a prestigiada Medalha Nacional das Artes.

Joan Didion, imagem do site Rascunho.

Em abril do ano passo a editora Harper Collins, reeditou, no Brasil, seus livros O álbum branco e O ano do pensamento mágico, o primeiro deles fora de catálogo há mais de 30 anos.

As duas jornalistas marcaram muitas épocas recentes – da contracultura dos anos 1960-70 ao pop dos anos 1980-90 e ao contemporâneo posmorfo que o sucedeu. Cabe dizer que foram influentes tanto na “costa Oeste”, onde moravam, como na “costa leste”, o que é muito, muito raro, mais ainda para mulheres.

A Netflix tem um documentário bem interessante sobre Didion: “Joan Didion: The Center Will Not Hold”, feito por Griffin Dunne, seu sobrinho, lançado em 2017.

Em comum entre as duas havia o seu sarcasmo e o feminismo. Certo, não eram teóricas do feminismo e nem do antipatriarcalismo. Você não irá citá-las na maiorias das teses e em discussões sofisticadas (os símbolos são outros), mas elas estavam sempre ali, dizendo, brigando, militando, constrangendo, questionando.

Cartas ao Leitor 2

Queridxs, bom dia e boa semana,

A vantagem da Covid, se alguma há, é a de nos trazer um pouco o grego. O idioma, não Zorba, ou qualquer outro, bem entendido. Ômicron, quando estudei grego, era O, micron. O ó curto, pequeno, ladino.

No que tange à pandemia, é O preocupante, e não, portanto, tão micron assim. É macron, ou mega, efetivamente. Mas continuemos. Continuemos para além da covidologia. Não percebemos de quantas mais letras gregas teremos de nos defender, mas deixemos que venham, que estaremos aqui para o que for possível, vacinados, com máscara, com ácool 90% e com o distanciamento social necessário. Sim, e desmentindo o genocida canalha, sempre que necessário.

Mas à propósito da escolha da letra O para falar da doença, permitam, apenas, que eu mencione o fato de que haveria de transtornar os gregos antigos: O, para eles, era o símbolo da eternidade, de algo que não acaba nunca… Na Alexandria helenista e sapientíssima até as pedras de rua do Rakhotis, o bairro popular da velha cidade, sabiam que não se devia usar a letra O junto de coisa ruim.

Gloups… Péssimo nome para uma variante da Covid… Alguém devia ensinar grego antigo à OMS e um pouco de cultura helênica à comunidade científica internacional.

Mas enquanto não fazem isso, fiquemos com o anedotário convencional.

No blog, esta semana, agendei, além desta Carta, a segunda crônica da série « O viajante literário em Londres ». Nela, visitaremos os endereços de Samuel Taylor Coleridge e de John Keats, dois grandes poetas. Essa crônica sai na quarta-feira a noite. Antes dela, amanhã, sai um texto sobre duas jornalistas americanas recentemente falecidas, Eve Batiz e Joan Didion, personagens influentes do jornalismo cultural das últimas décadas. Já na sexta-feira publico um resenha sobre… bom, se antecipar pode perder a graça.

Boa semana a todos e a todas.

Nos rastros do Réptil 1

O tema do exílio, claro, é central no livro. Exílio tende a dizer uma experiência de atopia, a ausência de espaço, mas essa experiência não existe, de fato, sem uma paralela acronia, a ausência de tempo. Viver longe do seu lugar é, também, viver sem acompanhar o tempo do seu lugar.

Essa dialogia evoca Bakhtin e seu bem conhecido conceito de cronótopo – o tempo-espaço como unidade de análise da criação literária – mas apenas como um referente. Para dizer o exílio, com sua atopia e acromia co-referentes, o cronótopo não faz sentido. Seria preciso algo como uma acronotopia. Todo exílio é acronotópico.

Certo, também se poderá ver, aqui, a ideia de cronótopo, porque, dirão, a cronotopia não deixa de ser uma acronotopia – à medida em que idealiza um não-lugar e uma não-temporalidade que, pela via da enunciação acabam por se tornar lugar e temporalidade. Mais ou menos. O conceito de temporalidade, em Heidegger e em outros filósofos, não concebe temporalidade como uma experiência do tempo físico, tal como o ser não é, simplesmente, um sujeito e o lugar não é, simplesmente, um espaço. Eis o caminho e a pista. Ademais, cabe lembrar que a acronotopia produz, igualmente, uma acromia: a ausência de tez, a ausência do rubro tempo e da vida coetânea. E por isso, o cronótopo não explica tudo, não explica o traço, o rastro, a ausência.

O viajante literário em Londres 1

Defoe, Pope e Fielding

Imagens de Marina Ramos Neves de Castro

Uma de minhas identidades profundas é a de ser um turista literário. Nos quatro anos em que morei em Paris não houve dia que não respirasse a Paris vivida por escritores. Uma amiga, embora não sem ironia, me disse, certa vez: “Respiraste o mesmo ar que todos eles!”

Certo, mas não há de ter sido o mesmo ar, já ocupado, nestes tempos, menos pela grande literatura de que por propelentes, dioxanos surfactantes e antibacterianos, etoxilatos de nonilfenois, hidrocarbonetos e dióxidos de nitrogênio. Mas a imagem literária, já caquética, ainda vale.

O mesmo ocorreu quando morei em Montreal e em Londres e se repetiu quando estive em um monte de outras cidades, de Lisboa a La Paz, de Nova York a Buenos Aires, do Rio a Filadélfia. Viajante literário, gosto de caminhar e deambular, vou, aqui e ali, imergindo nos lugares habitados ou referidos pelos escritores.

E assim foi que, chegando a Londres, em setembro de 2017, para lá residir por seis meses, mesmo tendo muito a fazer, imprescindi de organizar uma lista com os endereços onde viveram alguns escritores londrinos. Na medida do possível busquei visitar suas casas, ou melhor, as fachadas de suas casas, porque quase nunca elas estavam abertas ao público.

Cidade profundamente literária, tanto quanto Paris, Londres resta um livro aberto. Esboço cartografias afetivas, projetando as identidades delas em mim e o oposto: quem sou, ou seria, nelas. Perambulações e deambulações iniciáticas.

Em ordem temporal, começo com Daniel Defoe (1663-1731), de quem apenas li o clássico Robinson Crusoe, publicado em 1719. Jamais o leria, não fosse a intervenção de meu avô José, que amava relatos de viajantes e, sobretudo, de naufrágios. Para ele, esse livro era um pobre fragmento malcomparado à monumental História Trágico-Marítima portuguesa, seu livro de cabeceira; mas merecia ser lido.

Imagens de Marina Ramos Neves de Castro

Sobretudo pelo tema da subjetividade, visceral nesse livro. Eu mesmo creio que a invenção da ideia de voz interior, tão importante para a literatura, deve imenso a Defoe e a esse seu livro, senão mesmo ao marinheiro escocês Alexander Selkirk, náufrago perdido numa ilha deserta durante quatro anos e cujo relato constitui a base do Crusoé.

Defou habitou 95 Stoke Newington Church Street, Stock Newington. Coloquei no GPS, no Maps, no Bus Time London, no City Map e no Waze. Hora e meia só para chegar. Errei o caminho, me perdi. Voltei e comecei de novo. Não desanimei porque errar pelas cartografias constitui a essência dos náufragos, inclusive dos náufragos da literatura.

Finalmente encontrei o que, há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, foi a casa onde morou Defoe. Hoje, só resta uma plaquinha. Tempo perdido? Claro que não.

Prossigo, na mesma ordem temporal de minha lista de autores, até 110 Chiswick Lane South, Chiswick, endereço onde viveu Alexander Pope (1688-1744). Passei de ônibus à frente desse distante endereço e o dei por visitado, porque estava a caminho da casa de Fielding, vindo de Hammersmith e tinha pressa. De resto, depois da decepção quanto a casa de Defoe, já imaginava que só ia ver uma plaquinha.

Imagens de Marina Ramos Neves de Castro

Mas isso não desabona Pope. Aliás, tenho certa tendência a me identificar com Pope, simplesmente por afetividade em relação ao seu espírito satírico. Não que me veja assim, mas não que não me veja, igualmente. E, ademais, tem sua hostilidade ao mundo, devida talvez ao que sofreu por ser cristão, ou por seus problemas de saúde. Sempre achei que Pope representava o triunfo da palavra… sobretudo da que quase-foi-dita.

Um dos livros mais ferozes que li foi The Rape of the Lock (O rapto da Madeixa), publicado em 1712, no qual Pope ridiculariza o esnobismo, a galanteria, a frivolidade dos que se sentem superiores. Sempre achei que esse livro deveria ser reescrito por alguém a cada 50 anos, pelos menos, para seguir desconstruindo as assertivas de classe que justificam toda a exclusão social. Recordo que minha avó Maria Vera me deu esse livro de presente, comprado no sebo de Eduardo Failacce, quando fiz 12 anos de idade, recomendando que eu lesse as entrelinhas:

“Na verdade, não é de Helena de Troia que estão falando, e nem mesmo de uma mecha de cabelo”.

Hoje percebo que Pope foi um dos grandes mestres da literatura satírica, mas também um dos grandes mestres da tradução da literatura clássica. Nele, o passado confronta o presente, perfazendo o ridículo, o burlesco, a sátira. Não há paralelos em língua portuguesa, mas há um eco de Pope em Machado de Assis, creio, justamente nessa relação passado-presente…

Prossigo até Milbourne House, Barnes Green, onde viveu Fielding. Como disse, estava a caminho de lá.

Imagens de Marina Ramos Neves de Castro

Henry Fielding (1707-1754), o li na edição vermelha de uma série de clássicos da editora Abril: Tom Jones. Primeiro vi o filme, que passava na televisão ao acaso de nossas vistas e interesse, na companhia do primo Marcelo, pré-adolescentes, e lembro de como rimos das aventuras de Tom Jones. O nome virou um xingamento, nos dias seguintes e meu pai acabou me perguntando porque é que eu estava chamando de Tom Jones um vira-latas que desejava ardentemente copular com a bem protegida cadela do vizinho. Mencionei o filme e meu pai me ofereceu o livro. Achei-o imenso e com letras miúdas, e o li aos pulos, mas me divertindo. Custava a crer que alguém do século XVIII tinha escrito aquelas porcarias, aquelas safadezas, e mais à frente comentei com o primo Marcelo: esses ingleses eram muitos safados, será que hoje fingem?

Referia-me à ideia que fazíamos, então, do povo inglês, certamente não herdeiro de Jones – e nem de Fielding, tampouco.

Fábio Horácio-Castro

Os textos da série O Viajante Literário em Londres saem neste blog todas as quartas-feiras a noite.

Cartas ao Leitor 1: 2022

Queridos, bom dia e feliz ano novo. Feliz 2022! Saúde e coragem!

Inicio este blog num ano de luta e acreditando que literatura, cultura e política são a mesma coisa quando se trata de disputar um projeto de mundo. Também acredito que projetos de mundo são obras coletivas e que, em torno deles – e delas – não andamos sós.

Entramos em 2022 num sábado, simbolicamente o último dia da semana, o que, imagino, possa sugerir que é também o último ano de um ciclo. E que, portanto, 2023, será um grande ano.

Enquanto ele não chega, nos viremos com 2022. Ano de luta, ano da conquista de 2023. Não será fácil. Mas é o ano do Tigre, no horóscopo chinês. Apeguemo-nos a isso, para lutar contra a ignorância, contra o bolsonarismo e em favor de Lula Presidente. Lula se tornou um projeto racional e de salvação nacional. Se não for ele, continuaremos afundando, com quilos de chumbo nos pés, senão mesmo nas costas.

Será um ano, também, de debate ambiental – felizmente. Ano das ciências básicas para o desenvolvimento sustentável e ano do desenvolvimento sustentável dos biomas montanheses, segundo a ONU. Ah, e, ainda segundo a ONU, ano internacional da pesca e da agricultura sustentáveis. Pensemos nisso.

Nos calendários paralelos entraremos no ano 4.720 no calendário chinês, 5.783 do calendário hebraico, 1.944 do calendário hindu, ano 1.444 do calendário mulçumano, ano 1.401 do calendário persa e no ano 231 do calendário revolucionário francês.

O ano é cheio de efemérides que valem à pena ser lembradas:

No dia 1° de janeiro comemoramos os 300 anos da aparição do 1° jornal latino-americano, a Gaceta de México.

No dia 15 de janero festejamos os 400 anos de nascimento de Molière.

No dia 17 de janeiro, celebramos os 20 anos de partida de Camilo José Cella, prêmio Nobel de literatura.

No dia 7 de fevereiro relembramos os 210 anos do nascimento do escritor Charles Dickens.

No dia 11 de fevereiro relembramos o centenário da Semana de Arte Moderna brasileira.

No dia 16 de março festejamos os 130 anos de nascimento do poeta César Vallejo.

No dia 2 de maio, também festejamos os 250 anos de nascimento do poeta Novalis.

Ainda em maio, no dia 18, estaremos nos 150 anos de nascimento de Bertrand Russel, Nobel de literatura.

A 6 de julho, celebramos os 60 anos de partida de William Falkner.

A 29 de setembro, os 120 anos de partida de Émile Zola.

A 21 de outubro, comemoraremos os 40 anos de recebimento do Nobel de literatura por Gabriel García Márquez e, no mesmo dia, os 250 de nascimento po poeta Samuel Taylor Coleridge.

A 16 de novembro, celebramos o centenário de nascimento de José Saramago, igualmente Nobel de literatura.

2022 refere outras datas políticas: logo no 1° de janeiro, 20 anos da entrada em circulação do Euro (e eu vi isso…). A 7 de fevereiro, os 30 anos da criação da União Europeia. A 8 de março os 105 anos de Revolução Russa.

Será ainda um ano de grandes lutas políticas: em janeiro, eleições legislativas em Portugal e presidenciais na Itália. A 10 de abril, 1° turno das presidenciais na França. A 29 de maio, presidenciais na Colômbia. A 2 de outubro, eleições gerais no Brasil.

Para completar, preciso referir que neste ano entram em domínio público os livros, filmes e músicas lançados em 1926 nos Estados Unidos. É pouco e todos nós queríamos mais, mas dizê-lo faz pensar que precisamos lutar por um domínio público mais racional, equitativo, ponderado e, sobretudo, que melhor aproxime público e obra.

Criei este blog para estar de outro modo com vocês, ou para estar melhor com vocês. A ideia é falar com minha voz literária, ou com o que quer que isso signifique. Sigamos juntos.

Um novo blog

Salve, gente. Este blog fala de literatura e coisas afins. Foi criado para me dar espaço para falar de coisas que gosto muito, sem maiores pretensões ou compromissos. Meu nome é Fábio Horácio-Castro, e meu romance O Réptil Melancólico venceu o prêmio Sesc de Literatura de 2021, com o que entrei nesses mares (ou emergi, no movimento deles). Das mil conversas que se abriram com essa história, vim parar aqui.

Se quiserem saber mais sobre mim, recomendo acessarem, aqui, o site do outro sujeito que se faz passar por mim para ganhar a vida, o Fábio Fonseca de Castro, professor da UFPA. Como ele é prolixo, vai acabar explicando tudo. Quanto a mim, só quero falar de literatura (certo, e das tais coisas afins, sejam quais forem). O blog tem algumas seções fixas, com dia certo para sair (vejam em Sobre o blog), e outros posts que saem quando for para saírem.

Cartas aos Leitores – Nesta seção, que aparece toda segunda-feira, às 10 da manhã, publico breves cartas aos leitores do blog. Hora de passar assuntos da semana que vai entrar, com comentários breves sobre temas culturais e literários.

Crônicas – Minhas crônicas, sobre os mais diversos assuntos, agrupadas em séries. A primeira série, chamada The Londonian Diaries, em 12 episódios, fala dos escritores de Londres e de minhas aventuras de turista literário quando morei nessa cidade. Sai todas as quartas, às 23 horas.

Resenhas – Nesta seção, que sai nas sextas-feiras, às 16 horas, semana sim, semana não, comento alguns livros publicados recentemente. Sem pretensão a comentários profundos ou à crítica literária, busco ressaltar alguns pontos que chamaram minha atenção.

Na Trilhas do Réptil – Répteis deixam trilhas, algumas apenas para dissimular o seu percurso. Outras não. Nesta seção, que sai às sextas-feiras, também às 16 horas, em alternância com as resenhas, trago algumas pistas reptilianas do meu livro O Réptil Melancólico: pequenos detalhes, atalhos, pistas…

Podcast – Um áudio curto, de 15 a 20 minutos, falando dos livros que mais gosto, dentre clássicos e contemporâneos. Um monte de ideias sobre eles; uma leitura sincera, mas espantada. A seção começa em março. Aviso depois. Ainda vou dar nome a ele, ok?

Olhando o mundo – Uma seção sem compromisso, hora ou data. Sai de vez em quando, para comentar coisas que acontecem no campo da cultura em geral.

Notícias – Informações sobre cursos, palestras, lançamentos, concursos, etc.