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O viajante literário em Londres 7: Fantasmagorias de Dickens

Dickens não inventa nada; mas, como ninguém, faz a roda girar. Particularmente no caso das suas contumazes fantasmagorias. Assim, por exemplo, o clima de brouillard de tantos dos seus textos, é um tropos do romance fantástico, gótico: Dickens não o inventa, mas o reproduz de uma forma tão específica que parece uma coisa nova.

Em O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, tudo isso já está presente, e Dickens dialoga muito com a tradição neogótica presente nesse romance de maneira inaugurante, com suas passagens secretas, fogs, ratos, teias de aranha, noivas fantasmas, velas que nunca apagam, fantasmas puxando correntes e gemidos assustadores que cortam os ares da madrugada.

Tudo isso, antes de Dickens, foi importante para os pré-românticos e para os românticos. Mas Dickens tem uma imaginação prolífera, e leva além da tradição essa ambiência. Transporta tudo isso para uma sociedade moderna, urbana, peri-urbana ou para um rural remodelado pela industrialização das cidades. Essa é a diferença.

Ele, assim, não apenas atualiza todo esse velho clima de horror, trazendo o arcaico para a era industrial, como também dá mais vida aos semi-mortos de antigamente. A gente assombrada de Dickens transa, sente fome, chora, não entende, mente e faz intriga.

Mas do que isso: Dickens inventa tanto fantasma, mas tanto fantasma, que não há como não fazer uma verdadeira tipologia deles.

Primeiramente, há a categoria dos espíritos, daqueles que morreram e desgraçadamente voltam para incomodar os vivos. Em francês é o que se chama revenants. É o morto que causa impacto, que assusta. O espírito empoderado. O fantasma total, que aparece, fala e até apronta.

Por exemplo, em Dickens é aquele pequeno órfão, que foi maltratado, seviciado e assassinado e que volta na noite de Natal. Quando mesmo? Na noite de Natal. Pois é. Bem no meio da noite de Natal. O pequeno órfão atravessa uma porta e o narrador percebe, no dia seguinte, que essa porta era um armário que se encontrava murado há muitos anos. Típico de Dickens.

Outro exemplo é o enforcado. O que tem de enforcado na obra de Dickens não é brincadeira. E dentre todos eles, o enforcado enlouquecido da novela O quarto da Noiva. Um dos personagens mais assustadoras de toda a literatura. Dickens joga com a estrutura da narração. Viajantes estão mais ou menos perdidos numa grande casa antiga e de repente encontram um velho que, bestamente, caminha por essa casa de madrugada e que quer porque quer contar aos viajantes a sua “história”.

E conta uma história pavorosa: que tinha uma noiva e que a matou, para herdar sua fortuna, simplesmente sugestionando-a a morrer. Repetindo para a coitada “Dye, dye…”. Vejam só que coisa assustadora. Sobretudo em inglês, esse “Dye, dye…” é pesado. Quando dito em inglês, não é para fracos.

Os viajantes perdem a paciência com o velho e mandam que ele saia, mas ele os ignora. Apenas boceja e diz: “Preciso lhes contar, preciso lhes contar”.

Claro que eu sairia correndo, mas os dois viajantes são ingleses, e nem desconfiam que o velho é um revenant, um fantasma.

E ele então releva: “Vocês sabem onde tudo aconteceu? Foi aqui neste quarto. Este é o quarto da noiva”.

Credo. Puta merda. Se um simples pio da matinta já me retrai, imagina uma situação dessas, que tem um componente de manipulação.

Acho O Quarto da Noiva um grande estudo literário – no plano para-literário – e, no plano estritamente literário, uma obra de arte. Um estudo sobre a manipulação, inclusive sobre a manipulação narrativa. Vamos percebendo aos poucos que o velho é um grande manipulador, tão grande que, mesmo morto procura manipular os vivos.

Fora isso, ressoa Coleridge, especificamente aquele personagem fantasma de Coleridge que foi condenado a nunca mais para de contar a sua história.

Agora, para além de tudo isso, sabem o que acho mais espetacular nas histórias de terror de Dickens? O humor. Toda vez, quando chegamos no final das histórias, quando as tramas foram colocadas, trançadas e destrançadas, os ouvintes sempre, sempre, acabam cochilando. Isso é muito, muito engraçado, e é de uma sutileza extraordinária. São histórias que espelham o mundo da vida e que, dessa maneira, perfazem novamente as fronteiras entre mundos, que é o terreno onde Dickens se sente à vontade.

Ao espelhar o mundo da vida, o banal do humano, como o medo e o sono – e, ainda, ao se construírem geralmente por meio de uma narrativa que utiliza o diálogo como sua forma literária fundamental – as histórias de fantasma de Dickens têm, como todas as histórias de assombração, uma constituição basicamente oral.

Sem tempo para falar agora sobre as demais categorias de visagem de Dickens, deixo as quatro outras que vejo (hum, a palavra é sugestiva, neste contexto) para uma outra oportunidade.

Nos rastros do Réptil 5

Há 50 anos teve início, nesta data de 12 de abril de 1972, a guerrilha do Araguaia. No Réptil Melancólico, é um tema importante, embora tratado de maneira oblíqua, como é a proposição narrativa e estética do livro. Selma, uma das personagens centrais, tem duas experiências de tortura, que marcam profundamente um dos principais narradores da trama, seu filho, Felipe. Seu percurso de vida é uma tentação narrativa e uma experiência central, absorvente, para mim. 

Passei uma parte da infância ouvindo histórias de tortura, que aconteciam ao meu lado e se vinculavam aos contos de terror que, paralelamente, habitavam meu universo: contos da cosmogonia amazônica, contos da floresta negra, fábulas góticas da Ibéria medieval, os contos de Canterbury e todas sorte de monstros, passíveis e impossíveis. Mas a ditadura milutar era o grande monstro. Em nosso abrigo, nossa casa afastada de Belém, cercada de mata, lago, silêncio e distância, escondíamos, muitas vezes, algumas pessoas. Alguns deles vinham do Araguaia, e outros e outras e outras e outras lutas, dentre as muitas que se faziam como a melhor esperança de acabar com a ditadura militar corrupta e abjeta que nos envolvia. Como foi a sua tortura, eu lhes perguntava, com seis, sete, oito anos de idade; e o relato deles é uma das partes mais importantes do Réptil.

Cartas ao Leitor 7: A indevida apropriação da “alma russa” pela propaganda de guerra

Por todo lado se tem evocado a “alma russa” para explicar a invasão da Ucrânia. Sem desmerecer as lições da literatura, creio, no entanto, que a geopolítica seria mais interessante para essa explicação – notadamente a compreensão de que, por mais injustificável que seja a invasão da Ucrânia, os Estados Unidos, se servindo da Otan e manipulando o fraco governo ucraniano, efetivamente cancelou todas as saídas diplomáticas possíveis.

Certo, a “alma russa” está presente aí, também. Mas não a “alma russa” cruel e totalitária que desejam fazer valer, nestas horas de russofobia, e sim a “alma russa” calejada por um espírito de proteção e de resistência diante da insistência, tanto do Ocidente como do Oriente, de ameaçar sua soberania – por exemplo, a invasão da Rússia ou da URSS pela Suécia, pela Polônia, pela França, pela Alemanha por duas vezes e pelo Japão, ao longo dos últimos 300 anos.

Muita coisa me deixa indignado nessa história. Primeiramente, claro, a invasão Muita coisa me deixa indignado nessa história. A invasão da Ucrânia pela Rússia, claro. Mas, tanto quanto ela, a russofobia, essa guerra de enunciados, essa manipulação de ódios e seus efeitos econômicos e, é preciso dizer, o jogo político dos EUA/Otan de ir pressionando a Rússia até a guerra, talvez apenas para poder impor as tais sanções econômicas.

E, particularmente, dentro da manipulação russofóbica em curso, me indigna, particularmente, o tal discurso sobre a “alma russa”, revestido do mais puro funcionalismo, sobretudo quando utilizam Dostoiévsky para explcicitá-lo.

E por que usam Dostoiévsky? Ora, porque Dostoiévsky desenvolve personagens que surgem das entranhas mais miseráveis da vida para cometer toda sorte de crimes, mesuinharias e pecados.

Usando Dostoiévsky para falar da tal “alma russa” sugerem que toda a Rússia, todo o povo russo, procede tal como os seus personagens. Sugerem que a violência presente no submundo retratado por seus romances constitui a essência e mesmo a totalidade do que seria o povo russo, o que é um grande absurdo.

E o pior é que essa confusão, essa narrativa propositadamente errônea, está sendo repetida por todo lado, à exaustão, dia após dia, no jornalismo e emissões literárias, redes sociais, muito particularmente na programação da Radio France Culture mas em todos os grandes veículos de comunicação do dito “Ocidente”.

Bem entendido que não estou aqui para justificar uma invasão militar, mas para defender o bom senso e o respeito pela verdade. E cabe dizer que, se uma “alma russa” existe, ela com certeza não tem nada a ver com o espírito bélico. Antes, deveria ser buscada na religiosidade ortodoxa, centrada numa peculiar ideia de salvação e na longa história eslava, com todas as suas experiências de defesa ante a violência de conquista, vindas dos imperialismos da Ásia, Europa e América do Norte.

Sobre Lygia

Partiu Lygia Fagundes Telles, aos 98 anos. 

Em 1996, em entrevista ao programa de televisão Roda Viva, lançou o código para este dia: “Quando a morte olhar nos meus olhos e disser ‘vamos’, eu digo ‘estou pronta, fiz o que eu pude'”.

Grande escritora e grande pessoa, grande dama, grande em tudo. Nome marcante do chamado pós-modernismo brasileiro – o momento literário que se seguiu ao modernismo, entrou delicadamente no campo literário, em 1938 – com o livro de contos Porão e Sobrado. Seguiram-se Praia Viva, em 1944 e O Cacto Vermelho,  em 1949 – vencedor do prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras. Esse prêmio lhe deu grande visibilidade e abriu terreno para o livro seguinte, uma explosão de estranha sensibilidade, marco de uma virada na carreira da autora, segundo Antônio Cândido.

Livro curioso, esse Ciranda de Pedra. à primeira vista, é uma narrativa fácil de acompanhar, bastante fluida, mas se se percebe bem, por trás dessa aparente facilidade tem uma narrativa paralela, cheia de metáforas, que se forma por meio do uso do discurso indireto livro, ecoando a voz interior de Virgínia, a personagem principal. Silviano Santiago chamou a isso de “linguagem alucinatória”. 

Uma voz anterior que traduz a passagem da imaturidade e da inexperiência para o amadurecimento, a aceitação do fato de que o mundo tem estranhezas, mistérios e injustiças. Uma passagem, porém, que se dá sem que se perda a honestidade.

Aliás, honestidade é uma das grandes marcas da obra de LFT. 

Isso se vê, sobretudo, nos grandes livros dos anos 1970: Antes do Baile Verde, de 1970; As Meninas, de 1973 e Seminário dos Ratos, de 1977. Honestidade, delicadeza e coragem. Três palavras que eu usaria para descrever sua obra. 

A coragem tem muitos exemplos. Um deles ocorreu naquele dia 25 de janeiro de 1977, quando Lygia foi a Brasília, juntamente com a escritora Nélida Piñon e o historiador Hélio Silva, para entregar ao ministro da Justiça da ditadura, Armando Falcão, um manifesto assinado por 1.046 intelectuais e artistas brasileiros. pedindo  o fim da censura e das demais restrições à liberdade de expressão. 

Essa mesma coragem se associa à honestidade e à delicadeza quando

Penso que LFT foi a primeira autora brasileira, a primeira mulher escritora, justamente com Ciranda de Pedra, a desvelar a raízes do patriarcado. E a enfrentá-lo. Como? Com a voz interior de Virgínia, com esse discurso indireto livre que oferece, à mulher Lygia, à mulher Virgínia, condições de resistência, intelecção, crítica  pela via do intimismo. 

Lygia Fagundes Telles foi uma grande escritora, com uma obra marcante. Foi também uma mulher admirável, inspiradora, um tanto enigmática.

Foi a 3º mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1985. Em 2016, aos 92 anos, tornou-se a primeira mulher brasileira a ser indicada ao Nobel de Literatura. E, apesar do relativo desdém da crítica a suas primeiras obras, inclusive ao mencionado Ciranda de Pedra, foi uma escritora bastante reconhecida, como atestam sua inúmeras premiações: os prêmios Jabuti, Camões, Juca Pato, Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Biblioteca Nacional, troféus da União Brasileira de Escritores e da Associação Paulista de Críticos de Arte e vários prêmios fora do Brasil.

Nos rastros do Réptil 4

A atualidade é algo fútil e fugaz, mas é algo que é mais intensamente do que muitas coisas que duram e que são sérias. Colocar em itálico essa condição de ser, esse é, constitui em evocar uma temporalidade: o intenso é temporal. Não uso o termo temporal como duração no tempo, mas como intensificação do tempo. O evento, o fato, o acontecimento – em síntese, a política – intensificam o tempo presente e, assim, igualmente, o real. Esta é a sua temporalidade.

Os filósofos e os cientistas sociais sempre se mostram desconfiados diante de tudo o que lhes parece efêmero e evanescente. Coisas como a política e a comunicação (para não dizer o jornalismo) são, essencialmente, isso: o entender efêmero e evanescente do mundo.

Porém, Hegel diz que a consciência deve, necessariamente, se confrontar com o elemento histórico: aquilo que se apresenta à consciência, o mundo que se apresenta à consciência. Hegel não fala, necessariamente, aqui, do passado, mas daquilo que faz parte da realidade material do mundo do presente, sendo ao mesmo tempo produto e destino da história.

Concordaria com Hegel, não fosse a sua posição de fala pretender a uma certa ética do dever-ser. Indo além de Hegel, creio que a história se faz também presente em tudo aquilo que é efêmero e evanescente. E, igualmente, não creio que toda inteligência devenha de um confronto.

Vivemos sempre sob intensos temporais de história. A história intensifica-se, também na efemeridade e na evanescência.

Marcel Proust: 150 anos de seu nascimento e 100 de sua morte

Um dos museus mais legais de Paris é o Carnavalet, que acabou de reabrir depois uma imensa reforma que durou cinco anos. Já conhecido por sua ala dedicada a Marcel Proust, que incluía uma reprodução detalhada – e com os móveis originais – do apartamento que o escritor habitava, antes de morrer, o museu reabre ao público com uma ampliação dessa ala e uma exposição temporária dedicada a ele: “Marcel Proust, um romance parisiense”, que retraça os passos do escritor em Paris, seguindo os do protagonista de Em Busca do Tempo Perdido.

A exposição temporária, que termina no próximo dia 10 de abril está detalhada no site do museu, na seção que pode ser consultada aqui, onda há, inclusive, um dossiê pedagógico muito bem feito.

A exposição faz parte das várias homenagens que estão sendo dedicadas a Proust desde julho de 2021, quando celebraram-se os 150 anos de seu nascimento, ocorrido no dia 10 daquele mês, e que seguem até novembro deste ano, quando, no dia 18, celebram-se os 100 anos da sua morte.

Na imagem abaixo, a “cama de Proust”, numa réplica do seu quarto, em exibição no museu – lembrando que foi deitado nela que Porust escreveu uma boa parte do seu grande romance.

A exposição tem duas partes principais: de um lado, a realidade da Paris habitada pelo escritor e, de outro, aquela imaginada em seus livros.

Anexo um vídeo feito por um visitante da exposição e disponibilizado no YouTube:

Isto considerado, cabe lembrar que, desde 2018 a Universidade de Illinois, no norte dos Estados Unidos, em parceria com a Universidade de Grenoble e com a Biblioteca Nacional de França começaram a digitalizar e segue gradualmente disponibilizando o acervo de todas a correspondência conhecida de Proust: cerca de 5,3 mil cartas. O acervo foi reunido por meio de um projeto de pesquisa do professor da Univ. de Illinois, Philip Kolb, que mapeou a existência de um total 20 mil itens da correspondência do escritor, 3/4 desse material estando perdido ou extraviado. A própria Universidade já adquiriu 1,2 mil cartas de Proust, perfazendo umas das maiores coleções do mundo com materiais do escritor.

Interessante observar como o conceito de“literatura epistolar” vem ganhando destaque nos estudos literários contemporâneos. Com essa perspectiva, uma correspondência privada não é um mero vetor de informações paralelas ao universo literário – sobre a vida pessoal ou as percepções sobre o mundo da época de um autor, mas parte mesmo de sua obra criativa. Esse acervo pode ser consultado neste endereço.

O viajante literário em Londres 6: Dickens e as fronteiras do mundo

Dickens não nasceu em Londres, mas foi a síntese de Londres. E foi a síntese de uma época de autoreflexividade que tinha, em Londres, seu grande espaço de produção. A Inglaterra vitoriana tinha um imenso apetite por ficção e, nesse contexto, vários autores buscavam a independência financeira escrevendo num lugar que permitia, inclusive, espaço para mulheres autoras, como comprovam as irmãs Brontë, Jane Austen, Frances Burney e Maria Edgeworth. Nesse tempo as novelas publicadas em penny-paper e os folhetins de jornal podiam influenciar mais a opinião publica do que panfletos, e a literatura funcionava como uma espécie de voz reflexiva do debate, como o adversarial principle – essa voz constante da consciência, sempre autocrítica de si mesma, sempre em dúvida a respeito de nosssas certezas, que tanto falta aos nosso mundo.

Mas é certo que tudo isso tenha paralelos.  Síntese de Londres, ou de uma certa Londres, Dickens o foi, evidentemente. Mas sempre com paralelos. A autoreflexividade o demanda. Por exemplo, na eterna comparação entre a Londres de Dickens e a Paris de Balzac…

Ou na autoreflexividade que invadiu Londres, quando Dickens morreu. Nove de junho de 1870. A rainha Vitória entrou em prantos, por um lado. E, de outro, uma garotinha pobre que vendia frutas em Drury Lane, conta P. Collins em « The popularity of Dickens », publicano na Dickensian, número 70, indagou : « Isso quer dizr que Papai Noel também vai morrer ? ».

Era um sintoma. Os contos de natal de Dickens eram uma leitura obrigatória nos pubs, nos mercados, nas casas humildes e também nos castelos. Pelas bandas do East End – Houndsditch, Whitechapel, Aldgate, Spitalfields – na noite de natal, por um centavo se ganhava uma xícara de chá e o direito de ouvir a leitura desses contos. Londres lia pelos ouvidos. E enquanto o mundo católico frequentava a missa do Galo, Londres frequentava Charles Dickens.

Reflexividade é isso. Dickens doi um desvelador (um criador?) dos signos bárbaros da modernidade e do capitalismo. E nesse sentido Dickens, mais do que ninguém, cotejou a dicotonia das classes, da produção social da riqueza e da produção social da pobreza, mais do que ninguém – inclusive Balzac. Ninguém desenhou melhor o contraste tão precário entre « the purlieus of the rich » e « the slums of the poor ».

Ninguém descreveu tão bem os monstros que vagam nessa fronteira, capturando alimento ora de um lado, ora de outro. Aliás, nesse aspecto, cabe evocar André Maurois: “Je crois que l’aptitude pour créer des monstres est souvent le signe du grand romancier”. Ou seja: conhecemos os grandes romancistas por meio de sua capacidade de criar monstros.

Atividade particularmente fácil quando o espaço literário é a cidade de Londres, porque no meio do brouillard de Londres, as formas mais simples se tornam monstruosas.

E Dickens é um especialista nesse quesito. Dickens tem uma capacidade de justapor suas frases com uma rítmica que se desenvolve como a sensação de um labirinto. Uma hora cá e outra lá, de cada lado das muitas fronteiras da literatura.

E não só nas suas construções frásticas e parafrásticas. Igualmente nas tramas de suas histórias.

Jamais esquecerei do impacto profundo que foi, na minha vida, a leitura de The Great Expectations, quando Dickens me surpreendeu, enganou e amedrontou com sua descrição, até hoje pavorosa, da cena, logo no começo desse livro, em que o jovem Pip, Philip Pirip, se encontra perdido num pântano e em meio ao brouillard de sempre, visitando a tumba dos seus pais, é surpreendido por uma figura espectral portando correntes atadas aos pés. O jovem Pip ajuda a criatura se liberar de suas correntes e todos nós ficamos envolvidos naquele clima assombrado, mortos de medo de continuar a ler essa história bárbara que vai parecendo ser uma história de visagem. E é somente muito mais tarde que vamos descobrir que, na verdade, o fantasma era Abel Magwitch, um prisioneiro evadido, que irá presentar Pip, repentinamente, já depois do meio da história, com uma imensa fortuna.

Na minha compreensão, a zona de movimento das histórias de Dickens são, geralmente, esses espaços fronteiriços: fronteiras entre realidade e irrealidade, entre classes sociais, entre preconceitos, ideologias e a alegria de viver. Dickens, mais do que qualquer outro escritor, falou das fronteiras entre os mundos e mostrou como a maioria delas é inventada pelo capitalismo. E é por isso que Bakhtin, no seu “Questões de Literatura e de Estética”, coloca Dickens na sua relação de escritores que produzem “uma ruptura com as grandes realidades da vida”.

Autoreflexividade é a grande chave, o grande dispositivo, para romper as realidades. Que seria a grande literatura sem autoreflexidade?

Dickens o faz num tempo de radical construção de fronteiras. Nenhum tempo produziu mais fronteiras, no mundo, do que o século XIX. O tempo de Dickens é um tempo de fronteiras e Dickens produz a interpenetração entre elas. A Londres cosmopolita de Dickens era não só um mundo; era também um mundo de mundos. E por isso a nobre arte de atravessar fronteiras, possibilitada pela literatura, tinha um impacto tão grande. Aliás, abe perceber que essas fronteiras estão presentes, também, nos múltiplos interesses e atividades de Dickens: o teatro amador, o hipnotismo, os shows de magia, o jornalismo, o folhetim. Tudo isso eram coisas que desvelavam, transgrediam, uma determinada compreensão da realidade. Amo Dickens, sobretudo, porque ele descreve e transcende, por meio dessa autoreflexividade, fronteiras e realidades.

Populações Tradicionais na Amazônia

O curso que ofereço no Ppgcom, neste semestre será ministrado juntamente com o Prof. Jax Pinto, da UNIFESSPA e também com importantes convidados, Flávi Ribeiro, integrante da Associação de ribeirinhos da Ilha Sirituba, Jorge Neri e Jeni Almeida, camponeses do Assentamento Palmares II; Tamires Cardoso Teixa, coordenadora de Programas Comunitários da Associação de Moradores e Produtores do Quilombo de Abacatal; Atanagildo de Deus Matos, o Gatão, integrante do Conselho Nacional das Populações Extrativistas; Cacique Cátia Cilene, da Aldeia Akrâtikatêjê da matriz Gavião e de outros que ainda virão se somar nós.

No Programa, alguns tópicos igualmente muito importantes para pensar a Amazônia: Mapas antropológicos, históricos e literários das populações tradicionais da Amazônia; Histórias de vida e saberes ribeirinhos; Campesinato de fronteira e estratégias de reprodução social na Amazônia; Diálogos entre saberes tradicionais e vida urbana amazônica; Saberes das populações extrativistas e seu papel na preservação ambiental; Narrativas de vida e experiências dos povos indígenas na Amazônia; Saúde e comunicação da Amazônia: Experiências tradicionais e enfrentamentos da pandemia; Memória social das populações atingidas por barragens; Modos de habitar e de desabitar na Amazônia: práticas residenciais e expurgos territoriais; Saberes alimentares amazônicos, etc.

Inscrições para alunos da UFPA até 6a-feira e para ouvintes até a semana que vem.

O viajante literário em Londres 5: Dickens, homem de seu tempo

Chegamos a Dickens no meu turismo literário. Fã incondicional, vou falar muito sobre ele, incontido e reverente. Dickens é um grande mestre, grande entre os grandes. Das casas em que viveu, em Londres, a mais referente é 48 Doughty Street, em Camden, onde hoje se encontra o Charles Dickens Museum. Fácil chegar, entrar, ver, pensar…

Charles Dickens é geralmente associado à era vitoriana mas, tecnicamente falando, é anterior a ela, pois nasceu em 1812 e Vitória só chegou ao trono em 1837. Ou seja, Dickens viveu 25 anos, quase a metade da sua vida, sem ser vitoriano. Entendemos o que as pessoas querem dizer: é que Dickens representa, como ninguém, a Londres do século XIX e da segunda revolução industrial.

Mas, vejam; Dickens, quando pensava sobre si mesmo, sobre o que era sua literatura, via-se como um herdeiro dos romancistas ingleses do século XVIII, como Defoe, Fielfing, Goldsmith, autores que ele amava.

Mas Dickens é um escritor do seu tempo e transcende essas epocalidades. Nem todo os escritores são tão contemporâneos de sua época e nem todos dão, tão bem, a margem do seu contemporâneo.

Hoje em dia é mais fácil tentar inserir Dickens da era vitoriana, certo, mas penso que houve um tempo em que foi mais fácil incluir a rainha Vitória na contemporaneidade dickensiana…

Isso porque Dickens foi lido e amado pelo conjunto da sociedade britânica, que se reconheceu nela como poucas sociedades se reconheceram, em sua época, em alguma literatura. Nosso autor agradava à classe trabalhadora porque denunciava as condições miseráveis em que viviam. E agradava aos burgueses, porque sabia mostrar a sua “humanidade” e, assim, estabelecia um vínculo com eles. Isso dito, entende-se porque Dickens foi um escritor extremamente popular – provavelmente o mais lido no país no século XIX. Todo mundo o lia (ou escutava): do analfabeto, presente nas inúmeras leituras públicas da sua obra, à rainha Vitória, justamente e ninguém menos, sua fã incondicional.

Sim, e também Marx, que foi um leitor atento de Dickens, considerando que sua obra trazia exemplos e elementos fundamentais para entender o capitalismo. Com efeito, Dickens via a ficção na realidade, fazendo com que a observação se transformasse em processo romanesco com grande dinâmica, e nem todos os autores fazem isso. E ainda cabe considerar a imensa empatia dele pelos desviantes, o que fez com que fizesse descrições efetivamente etnográficas.

Marx, pois é. Da rainha Vitória a Marx. Ah, e Dostoievski também.

Sabem qual foi a primeira pergunta que esse grande autor russo fez, quando saiu da prisão?

“Tem um novo Dickens?”

Nesse aspecto da popularidade, está bem a frente de Balzac – que mencionei em outra crônica. Não que Balzac não fosse popular, mas de fato não era tão popular como Dickens. Se há um paralelo na literatura francesa, em termos de popularidade, certamente é Dumas.

E o que eu falava acima sobre sua contemporaneidade tem a ver, provavelmente, com a sensibilidade de Dickens para olhar para sua própria vida, sensibilizar-se sem autocomiseração e transformar isso em literatura.

Dickens foi capaz de descrever todos os estratos sociais, primeiramente, porque teve experiência de todos eles, da sua classe média de origem à pobreza e, dela, à riqueza. Certo, era um grande andarilho de Londres e de seus arredores e um grande curioso, mas tudo era mediado pela sua própria experiência de mundo.

Por vezes trágica…

Seu pai foi um pequeno funcionário da Marinha, o que permitia à família uma condição de classe média. Gastava um pouco mais do que ganhava, pequenas dívidas que foram se acumulando e gerando juros. Acabou sendo preso, o que levou a família a uma situação de grande pobreza. Para piorar, outras pessoas da família também foram presas, e Dickens passou a trabalhar, aos doze anos de idade, numa fábrica de graxa. O que ganhava era suficiente apenas para pagar a alimentação da família na prisão. E aí, de repente, tudo mudou: o pai do escritor recebeu uma inesperada herança, que permitiu que saldasse as dívidas e que a família se recompusesse.

Sim, o tema de herança e das soluções inesperadas, tão famoso na obra de Dickens e que é outro dos elementos que fazia com que sua escrita fosse amada no seu tempo.

Muito já disseram que foi esse trauma da infância que produziu o escritor. Pode ser. É evidente, quando lemos uma biografia de Dickens, a sua persistente dificuldade em se enquadrar numa das identidades convencionais da Inglaterra do seu tempo, seu eterno problema de pertencimento e, junto com ele, a dificuldade persistente em respeitar as normas vigentes.

Dickens e sua família saíram da pobreza, mas essa experiência se reflete em todos os meninos pobres que pululam em sua obra: David Copperfield, Oliver Twist, Jack Dawkins, Nicholas Nickleby, Philip Pirrip todos eles são o menino eterno Charles Dickens.

E daí se passa aos traumas da sua vida adulta, sobretudo os afetivos. De Maria Bidnel – a paixão de juventude, moça frívola e que não quis nada com nosso herói – a Catherine Hoggarthcom, sua esposa, e suas muitas irmãs, duas delas com grande importância na vida de Dickens, a menor, de quem ele era muito afeiçoado e que morreu aos 16 anos nos seus braços e a famosa Georgina, sua grande amiga, que ficou do seu lado no difícil divórcio do escritor depois de 22 anos de casamento.

Dickens morreu aos 58 anos. Sua época – e sua obra – imprimiram longamente a ideia que a Inglaterra faz de si e a ideia que o mundo faz dela. Foi o escritor da urbanização, da indústria e da perda dos velhos referenciais sociais. Foi o escritor que mais falou de instabilidade, mudança e fronteira numa sociedade que tinha uma verdadeira obsessão pela estabilidade. E, talvez justamente por isso, foi, numa sociedade rica de escritores, o que melhor permitiu, aos ingleses, uma voz psicanalítica que lhes dizia que era preciso conviver com a mudança, porque ela acontece.

Cartas ao Leitor 6: Kharkhov-casa, Odessa-mundo, exílio e literatura

A guerra da Ucrânia se processa – também – literariamente. Inclusive porque a literatura preserva a ponderabilidade, os valores, a alma dos lugares e, sobretudo, denuncia das mentias e ilusões. Kharkhov, bombardeada nos últimos dias, foi descrita, dentre outros, por Émmanuel Lévinas. Ele a conheceu no caminho do êxodo que o levou, a ela e a sua família, da Lituânia até a França. Kharkhov. Cidade muitas vezes referida em Totalité et Infini (1961). Lévinas imagina se fosse lá a sua casa. E casa, em Lévinas, significa muito mais que uma construção: “O papel privilegiado de uma casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a própria condição humana”.

O exílio é sem casa. O exílio sonha em recuperar a casa. Em ser-casa.

Cabendo considerar que “casa” significa, para Lévinas, ter lugar em um lugar, ser-lugar. Estar abrigado. Sonho dos exilados – como eu, inclusive, que nunca soube nem se tenho lugar na cidade em que habito.

Mas casa, para Lévinas, também significa abrigo, proteção.

A partir da sua casa”, assim compreendida, como abrigo, diz o filósofo, “o ser rompe com sua existência natural”.

Sim, toda casa uma ruptura, uma separação. Toda casa, quando abriga, quando protege, possui, fenomenologicamente, essa dupla condição: a de ser o vínculo com o lugar e a de ser ruptura com o lugar. A de ser de portas abertas e a de ser de portas fechadas.

Entre as paredes da casa se organiza o “recueillement” de consciência de que fala Lévinas: “porque o Eu existe quando se recolhe, quando se refugia entre as paredes de uma casa, de um abrigo”. E mais explica meu amigo Lévinas, dizendo que isso se dá porque “O homem se percebe no mundo como alguém que existe no ato de se recolher, no ato de se refugiar, empiricamente, em uma casa”.

O homem sempre está no mundo fazendo um movimento, sempre igual, de recolhimento, de retorno ao seu abrigo, a sua casa.

Estar abrigado tanto significa participar do lugar como se proteger do lugar.

E há lugares dos quais precisamos nos proteger. Belém, por exemplo, tal como Karkhov, a julgar pela etnografia fenomenológica que Lévinas fez dessa cidade.

Mas não Odessa, outra cidade ucraniana tristemente bombardeada por estes dias.

Certo, temos certo conhecimento geral sobre Odessa, mas não sobre Kharkhov – ou Carcóvia, em velho português. Odessa está no cinema e nos livros de história, mas Kharkhov, apesar de toda a sua história, é pouco notada e lembrada.

Kharkhov é casa, Odessa é mundo.

Kharkhov, que conheço de tanto que Lévinas falou sobre ela, tem, igualmente, muito passado. Kharkhov é a alma da Slobodskaya, região que se divide entre Ucrânia e Rússia, um pouco parecida com as cidades históricas de Minas Gerais, se for preciso encontrar um símile. Lugar cheio de passado, de história, de invenções linguísticas, de identidade, de segredos de família.

Ah, e Kharkhov também foi o centro, o núcleo efervescente da Associação Russa de Escritores Proletários, instituição fortíssima, que produziu conceitos que definiram o que era a literatura soviética, em seu tempo. Não é sem razão, portanto, que o maior museu de Kharkhov é o Museu da Literatura. O Único museu, no mundo inteiro, consagrado à literatura.

Ao contrário de Kharkhov, Odessa é mundo mais do que casa. Odessa é exterior, é uma dessas cidades públicas, com calçadas abrigadas da chuva, colunadas, avenidas cheias de árvores, imensos prédios públicos. Odesse é uma dessas cidades acaloradas, vivazes, cheias de vida. Uma cidade cheia de fantasia e de imaginação. Como Belém, por sinal.

Odessa é sua escadaria, retratada no Encouraçado Pontenkin, de Eisenstein, o primeiro grande filme da história, filmado em 1925.

Nestes dias tristes de guerra, quando Kharkhov-casa e Odessa-lugar vão sendo consumidos, vou, devagar, pensando na descrição que Políbio fez da história de Cipião Emiliano, encarregado por Roma de, naquele distante-próximo ano de 146, lamentando profundamente a sua missão mas executando-a, como bom soldado que era, destruir Cartago: delenda est… diziam e dizem…

Emmanuel Levinas –