
Dickens não inventa nada; mas, como ninguém, faz a roda girar. Particularmente no caso das suas contumazes fantasmagorias. Assim, por exemplo, o clima de brouillard de tantos dos seus textos, é um tropos do romance fantástico, gótico: Dickens não o inventa, mas o reproduz de uma forma tão específica que parece uma coisa nova.
Em O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, tudo isso já está presente, e Dickens dialoga muito com a tradição neogótica presente nesse romance de maneira inaugurante, com suas passagens secretas, fogs, ratos, teias de aranha, noivas fantasmas, velas que nunca apagam, fantasmas puxando correntes e gemidos assustadores que cortam os ares da madrugada.
Tudo isso, antes de Dickens, foi importante para os pré-românticos e para os românticos. Mas Dickens tem uma imaginação prolífera, e leva além da tradição essa ambiência. Transporta tudo isso para uma sociedade moderna, urbana, peri-urbana ou para um rural remodelado pela industrialização das cidades. Essa é a diferença.
Ele, assim, não apenas atualiza todo esse velho clima de horror, trazendo o arcaico para a era industrial, como também dá mais vida aos semi-mortos de antigamente. A gente assombrada de Dickens transa, sente fome, chora, não entende, mente e faz intriga.
Mas do que isso: Dickens inventa tanto fantasma, mas tanto fantasma, que não há como não fazer uma verdadeira tipologia deles.

Primeiramente, há a categoria dos espíritos, daqueles que morreram e desgraçadamente voltam para incomodar os vivos. Em francês é o que se chama revenants. É o morto que causa impacto, que assusta. O espírito empoderado. O fantasma total, que aparece, fala e até apronta.
Por exemplo, em Dickens é aquele pequeno órfão, que foi maltratado, seviciado e assassinado e que volta na noite de Natal. Quando mesmo? Na noite de Natal. Pois é. Bem no meio da noite de Natal. O pequeno órfão atravessa uma porta e o narrador percebe, no dia seguinte, que essa porta era um armário que se encontrava murado há muitos anos. Típico de Dickens.
Outro exemplo é o enforcado. O que tem de enforcado na obra de Dickens não é brincadeira. E dentre todos eles, o enforcado enlouquecido da novela O quarto da Noiva. Um dos personagens mais assustadoras de toda a literatura. Dickens joga com a estrutura da narração. Viajantes estão mais ou menos perdidos numa grande casa antiga e de repente encontram um velho que, bestamente, caminha por essa casa de madrugada e que quer porque quer contar aos viajantes a sua “história”.
E conta uma história pavorosa: que tinha uma noiva e que a matou, para herdar sua fortuna, simplesmente sugestionando-a a morrer. Repetindo para a coitada “Dye, dye…”. Vejam só que coisa assustadora. Sobretudo em inglês, esse “Dye, dye…” é pesado. Quando dito em inglês, não é para fracos.
Os viajantes perdem a paciência com o velho e mandam que ele saia, mas ele os ignora. Apenas boceja e diz: “Preciso lhes contar, preciso lhes contar”.
Claro que eu sairia correndo, mas os dois viajantes são ingleses, e nem desconfiam que o velho é um revenant, um fantasma.
E ele então releva: “Vocês sabem onde tudo aconteceu? Foi aqui neste quarto. Este é o quarto da noiva”.
Credo. Puta merda. Se um simples pio da matinta já me retrai, imagina uma situação dessas, que tem um componente de manipulação.

Acho O Quarto da Noiva um grande estudo literário – no plano para-literário – e, no plano estritamente literário, uma obra de arte. Um estudo sobre a manipulação, inclusive sobre a manipulação narrativa. Vamos percebendo aos poucos que o velho é um grande manipulador, tão grande que, mesmo morto procura manipular os vivos.
Fora isso, ressoa Coleridge, especificamente aquele personagem fantasma de Coleridge que foi condenado a nunca mais para de contar a sua história.
Agora, para além de tudo isso, sabem o que acho mais espetacular nas histórias de terror de Dickens? O humor. Toda vez, quando chegamos no final das histórias, quando as tramas foram colocadas, trançadas e destrançadas, os ouvintes sempre, sempre, acabam cochilando. Isso é muito, muito engraçado, e é de uma sutileza extraordinária. São histórias que espelham o mundo da vida e que, dessa maneira, perfazem novamente as fronteiras entre mundos, que é o terreno onde Dickens se sente à vontade.
Ao espelhar o mundo da vida, o banal do humano, como o medo e o sono – e, ainda, ao se construírem geralmente por meio de uma narrativa que utiliza o diálogo como sua forma literária fundamental – as histórias de fantasma de Dickens têm, como todas as histórias de assombração, uma constituição basicamente oral.
Sem tempo para falar agora sobre as demais categorias de visagem de Dickens, deixo as quatro outras que vejo (hum, a palavra é sugestiva, neste contexto) para uma outra oportunidade.