
Partiu Lygia Fagundes Telles, aos 98 anos.
Em 1996, em entrevista ao programa de televisão Roda Viva, lançou o código para este dia: “Quando a morte olhar nos meus olhos e disser ‘vamos’, eu digo ‘estou pronta, fiz o que eu pude'”.
Grande escritora e grande pessoa, grande dama, grande em tudo. Nome marcante do chamado pós-modernismo brasileiro – o momento literário que se seguiu ao modernismo, entrou delicadamente no campo literário, em 1938 – com o livro de contos Porão e Sobrado. Seguiram-se Praia Viva, em 1944 e O Cacto Vermelho, em 1949 – vencedor do prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras. Esse prêmio lhe deu grande visibilidade e abriu terreno para o livro seguinte, uma explosão de estranha sensibilidade, marco de uma virada na carreira da autora, segundo Antônio Cândido.
Livro curioso, esse Ciranda de Pedra. à primeira vista, é uma narrativa fácil de acompanhar, bastante fluida, mas se se percebe bem, por trás dessa aparente facilidade tem uma narrativa paralela, cheia de metáforas, que se forma por meio do uso do discurso indireto livro, ecoando a voz interior de Virgínia, a personagem principal. Silviano Santiago chamou a isso de “linguagem alucinatória”.
Uma voz anterior que traduz a passagem da imaturidade e da inexperiência para o amadurecimento, a aceitação do fato de que o mundo tem estranhezas, mistérios e injustiças. Uma passagem, porém, que se dá sem que se perda a honestidade.
Aliás, honestidade é uma das grandes marcas da obra de LFT.
Isso se vê, sobretudo, nos grandes livros dos anos 1970: Antes do Baile Verde, de 1970; As Meninas, de 1973 e Seminário dos Ratos, de 1977. Honestidade, delicadeza e coragem. Três palavras que eu usaria para descrever sua obra.
A coragem tem muitos exemplos. Um deles ocorreu naquele dia 25 de janeiro de 1977, quando Lygia foi a Brasília, juntamente com a escritora Nélida Piñon e o historiador Hélio Silva, para entregar ao ministro da Justiça da ditadura, Armando Falcão, um manifesto assinado por 1.046 intelectuais e artistas brasileiros. pedindo o fim da censura e das demais restrições à liberdade de expressão.
Essa mesma coragem se associa à honestidade e à delicadeza quando
Penso que LFT foi a primeira autora brasileira, a primeira mulher escritora, justamente com Ciranda de Pedra, a desvelar a raízes do patriarcado. E a enfrentá-lo. Como? Com a voz interior de Virgínia, com esse discurso indireto livre que oferece, à mulher Lygia, à mulher Virgínia, condições de resistência, intelecção, crítica pela via do intimismo.
Lygia Fagundes Telles foi uma grande escritora, com uma obra marcante. Foi também uma mulher admirável, inspiradora, um tanto enigmática.
Foi a 3º mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1985. Em 2016, aos 92 anos, tornou-se a primeira mulher brasileira a ser indicada ao Nobel de Literatura. E, apesar do relativo desdém da crítica a suas primeiras obras, inclusive ao mencionado Ciranda de Pedra, foi uma escritora bastante reconhecida, como atestam sua inúmeras premiações: os prêmios Jabuti, Camões, Juca Pato, Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Biblioteca Nacional, troféus da União Brasileira de Escritores e da Associação Paulista de Críticos de Arte e vários prêmios fora do Brasil.