A guerra da Ucrânia se processa – também – literariamente. Inclusive porque a literatura preserva a ponderabilidade, os valores, a alma dos lugares e, sobretudo, denuncia das mentias e ilusões. Kharkhov, bombardeada nos últimos dias, foi descrita, dentre outros, por Émmanuel Lévinas. Ele a conheceu no caminho do êxodo que o levou, a ela e a sua família, da Lituânia até a França. Kharkhov. Cidade muitas vezes referida em Totalité et Infini (1961). Lévinas imagina se fosse lá a sua casa. E casa, em Lévinas, significa muito mais que uma construção: “O papel privilegiado de uma casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a própria condição humana”.
O exílio é sem casa. O exílio sonha em recuperar a casa. Em ser-casa.
Cabendo considerar que “casa” significa, para Lévinas, ter lugar em um lugar, ser-lugar. Estar abrigado. Sonho dos exilados – como eu, inclusive, que nunca soube nem se tenho lugar na cidade em que habito.
Mas casa, para Lévinas, também significa abrigo, proteção.
“A partir da sua casa”, assim compreendida, como abrigo, diz o filósofo, “o ser rompe com sua existência natural”.
Sim, toda casa uma ruptura, uma separação. Toda casa, quando abriga, quando protege, possui, fenomenologicamente, essa dupla condição: a de ser o vínculo com o lugar e a de ser ruptura com o lugar. A de ser de portas abertas e a de ser de portas fechadas.
Entre as paredes da casa se organiza o “recueillement” de consciência de que fala Lévinas: “porque o Eu existe quando se recolhe, quando se refugia entre as paredes de uma casa, de um abrigo”. E mais explica meu amigo Lévinas, dizendo que isso se dá porque “O homem se percebe no mundo como alguém que existe no ato de se recolher, no ato de se refugiar, empiricamente, em uma casa”.
O homem sempre está no mundo fazendo um movimento, sempre igual, de recolhimento, de retorno ao seu abrigo, a sua casa.
Estar abrigado tanto significa participar do lugar como se proteger do lugar.
E há lugares dos quais precisamos nos proteger. Belém, por exemplo, tal como Karkhov, a julgar pela etnografia fenomenológica que Lévinas fez dessa cidade.
Mas não Odessa, outra cidade ucraniana tristemente bombardeada por estes dias.
Certo, temos certo conhecimento geral sobre Odessa, mas não sobre Kharkhov – ou Carcóvia, em velho português. Odessa está no cinema e nos livros de história, mas Kharkhov, apesar de toda a sua história, é pouco notada e lembrada.
Kharkhov é casa, Odessa é mundo.
Kharkhov, que conheço de tanto que Lévinas falou sobre ela, tem, igualmente, muito passado. Kharkhov é a alma da Slobodskaya, região que se divide entre Ucrânia e Rússia, um pouco parecida com as cidades históricas de Minas Gerais, se for preciso encontrar um símile. Lugar cheio de passado, de história, de invenções linguísticas, de identidade, de segredos de família.
Ah, e Kharkhov também foi o centro, o núcleo efervescente da Associação Russa de Escritores Proletários, instituição fortíssima, que produziu conceitos que definiram o que era a literatura soviética, em seu tempo. Não é sem razão, portanto, que o maior museu de Kharkhov é o Museu da Literatura. O Único museu, no mundo inteiro, consagrado à literatura.
Ao contrário de Kharkhov, Odessa é mundo mais do que casa. Odessa é exterior, é uma dessas cidades públicas, com calçadas abrigadas da chuva, colunadas, avenidas cheias de árvores, imensos prédios públicos. Odesse é uma dessas cidades acaloradas, vivazes, cheias de vida. Uma cidade cheia de fantasia e de imaginação. Como Belém, por sinal.
Odessa é sua escadaria, retratada no Encouraçado Pontenkin, de Eisenstein, o primeiro grande filme da história, filmado em 1925.
Nestes dias tristes de guerra, quando Kharkhov-casa e Odessa-lugar vão sendo consumidos, vou, devagar, pensando na descrição que Políbio fez da história de Cipião Emiliano, encarregado por Roma de, naquele distante-próximo ano de 146, lamentando profundamente a sua missão mas executando-a, como bom soldado que era, destruir Cartago: delenda est… diziam e dizem…