
Não tenho nada novo a dizer sobre a partida de Elza Soares, além de lamentar a sua perda, registrar minha imensa admiração por seu trabalho e por ela própria e mencionar sua importância não apenas para a cultura, mas para a sociedade brasileira.
Além do tanto que está sendo dito, só posso registrar o quanto me impressionam duas coisas: 1) a força de seu personagem público nos últimos anos 2) A musicalidade por trás desse personagem.
Refiro-me à fase, ou melhor ao conjunto de fases de Elza Soares iniciadas em 2002 com o CD “Do Cóccix Até o Pescoço” e, particularmente com a canção “A Carne”. O verso “A carne mais barata do mercado é a carne negra” é uma das coisas mais importantes da cultura brasileira, nos últimos tempos, por tudo o que representa. Composição de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelette, “A carne” vai perdurar por décadas no imaginário brasileiro – e não apenas no imaginário musical. Nada retrata melhor o racismo estrutural do que a interpretação de Elza para essa letra.
Cabe dizer que, por trás dessa interpretação e desse CD, tem a produção de José Miguel Wisnik, que colocou no trabalho de Elza sonoridades, como o hip-hop, que reorganizaram sua carreira e sua imagem. Sim, a política começa quando a ação adere à realidade. E nesse disco Elza adere à realidade até mais do que a política o faz.
O disco “A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015, é visto por muitos como a inauguração da fase final do trabalho de Elza, mas não deixa de ser, acho, uma continuação e renovação do percurso iniciado pela guinada de 2002. E digo isso com toda reverência, encantado pela maneira como o posicionamento político, social e cultural da grande cantora ganhou nitidez. E isso em tempos dos mais imperfeitos, obscuros e insensíveis da história do Brasil.
O disco “Planeta Fome”, de 2019, seu último trabalho, é o fechamento do longo ciclo iniciado no começo da sua carreira, com a famosa resposta dada a Ary Barroso no seu programa de calouros: “Nossa, de quem planeta você vem, menina?”, “Venho do planeta fome”.
Certo, desde sempre Elza Soares foi uma força da natureza, uma presença forte e instigante e uma voz maravilhosa, mas a idade, a experiência e a sintonia com a época tornaram-na, nestes últimos tempos, um personagem público, político, da maior importância no país. E, o que é incrível: um personagem feito de música.