O viajante literário em Londres 3: Shelley e Scott

Com assombro e desassossego diante da ciência desci na estação Sloan Square e caminhei em direção ao 24 Chester Square, onde Mary Shelley viveu, de 1846 até seu último ano de vida, 1851. Cheguei esbaforido e conferi: lá estava a plaqueta azul do English Heritage.

Hoje em dia Mary Shelley (1797-1851) é uma personalidade intrigante e todo mundo quer saber um pouco mais sobre ela. Quando estávamos morando em Londres, sua famosa novela, Frankenstein, completou duzentos anos e isso evidenciou tal interesse.

Folheando sua biografia In the search of Mary Shelley: The girl who wrote Frankenstein, de Fiona Sampson, percebo o quanto ela se torna um dos mitos urbanos da Londres atual. Mas também o quanto a experiência urbana de Londres se faz presente na sua obra.

Por exemplo, quando Mary Godwin – posteriormente Shelley – era adolescente e vivia nas proximidades do mercado de Smithfield, um de seus braços foi repentinamente tomado por uma misteriosa doença. Pelas informações que chegaram a nossos dias, tratava-se de uma psoríase agressiva, ou um severo eczema. Nada de muito grave, mas a impressão que esse evento gravou na mente da menina tornou-se um dos mais incríveis predicativos de uma obra literária futura. A experiência de ver seu braço sendo tomado “like a monstrous appendage stitched from some other body on to her own” foi o mais puro antecedente de Frankenstein.

A literatura estava lá, nas impressões da menina, e foi permitida pelo dispositivo do casamento com Percy Bysshe Shelley, advogado ateu e adepto do amor livre, grande poeta e amigo do mítico lord Byron.

O livro foi escrito, como se sabe, entre o outono de 1816 e dezembro de 1817, quando o casal, mais lord Byron e outros amigos alugaram uma casa no lago de Genebra – pasmem, a vila Diodati, casa pertencente ao meu antepassado materno Carlo Diodatti – e possuo uma gravura dela, afixada numa parede da minha casa.

Conta-se que, no momento da escritura do livro, Mary conviveu com alguns eventos corporais importantes: o nascimento de sua terceira filha, Clara, e o suicídio de sua stepsister Fanny Imlay e o suicídio da primeira esposa de Percy Shelley, Harriet, que foi encontrada afogada no lago Serpentine, no Hyde Park, em Londres.

Tudo em Mary foi corpo, com o complemento de alguma alma.

Tudo foi, igualmente, mundo.

Ao contrário, dentre muitos, de Sir Walter Scott, para quem, antes do mundo, havia o aqui.

Scott não morou em Londres, mas resta um dos grandes autores de língua inglesa da história e, penso, Londres é permeada por certa ausência de Scott. Certo, vocês podem pensar que isso é apenas um pretexto para eu falar de Scott nestas crônicas, mas realmente penso que há essa ausência, sempre presente. Desconfio que a literatura inglesa, embora seja muita coisa, é, também, uma ressentida ausência de Sir Walter Scott.

No começo do século XIX, a imensa popularidade das obras de Sir Walter Scott mostrava que a literatura podia ser, ao mesmo tempo, educativa, divertida e transcendental. Sua fama foi imensa em todo o Reino Unido e aumentava à medida em que suas interpretações da história e da mentalidade escocesas adentravam na imaginação popular. O próprio rei George IV foi seduzido por sua escrita a fama, a ponto de pedir de Walter Scott encontrasse, no castelo de Edimburgo, as chamadas “Honras de Escócia”, uma caixa com joias preciosas, perdida havia cem anos dentro do prédio – o que ele fez.

A literatura de Walter Scott era (é) aqui, antes de ser mundo. E isso resta como grandes marcas desse autor. E embora a Escócia seja prolixa terra de aquis, ela sempre, como todos sabemos, se dissemina pelo mundo.

Recordo meu primeiro encontro com ele: Lincoln Center, Nova York, ópera La dona del lago, de Rossini, libreto de Andrea Tottola sobre o poema The lady in the lake. Andares altos e pouco custosos, mas com visão excelente, inverno de 2015.

Londres não tem muita coisa da transcendência de Walter Scott. Paris a tem. Paris é lugar, enquanto Londres é mundo. A transcendência de Londres é a da cidade-mundo. Londres é Mary Shelley. Londres é máquina, cyborg, híbrido, Prometeu acorrentado que de repente fica livre. Mas Londres também é essa incrível lacuna de um, ou muitos, aquis.

Autor: Fábio Horácio-Castro

Escritor, jornalista, pesquisador, sociólogo, etnógrafo, fenomenólogo, professor. Sou também Fábio Fonseca de Castro e Fábio de Castro da Gama. Conforme a ocasião, o nome.

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