Defoe, Pope e Fielding

Imagens de Marina Ramos Neves de Castro
Uma de minhas identidades profundas é a de ser um turista literário. Nos quatro anos em que morei em Paris não houve dia que não respirasse a Paris vivida por escritores. Uma amiga, embora não sem ironia, me disse, certa vez: “Respiraste o mesmo ar que todos eles!”
Certo, mas não há de ter sido o mesmo ar, já ocupado, nestes tempos, menos pela grande literatura de que por propelentes, dioxanos surfactantes e antibacterianos, etoxilatos de nonilfenois, hidrocarbonetos e dióxidos de nitrogênio. Mas a imagem literária, já caquética, ainda vale.
O mesmo ocorreu quando morei em Montreal e em Londres e se repetiu quando estive em um monte de outras cidades, de Lisboa a La Paz, de Nova York a Buenos Aires, do Rio a Filadélfia. Viajante literário, gosto de caminhar e deambular, vou, aqui e ali, imergindo nos lugares habitados ou referidos pelos escritores.
E assim foi que, chegando a Londres, em setembro de 2017, para lá residir por seis meses, mesmo tendo muito a fazer, imprescindi de organizar uma lista com os endereços onde viveram alguns escritores londrinos. Na medida do possível busquei visitar suas casas, ou melhor, as fachadas de suas casas, porque quase nunca elas estavam abertas ao público.
Cidade profundamente literária, tanto quanto Paris, Londres resta um livro aberto. Esboço cartografias afetivas, projetando as identidades delas em mim e o oposto: quem sou, ou seria, nelas. Perambulações e deambulações iniciáticas.
Em ordem temporal, começo com Daniel Defoe (1663-1731), de quem apenas li o clássico Robinson Crusoe, publicado em 1719. Jamais o leria, não fosse a intervenção de meu avô José, que amava relatos de viajantes e, sobretudo, de naufrágios. Para ele, esse livro era um pobre fragmento malcomparado à monumental História Trágico-Marítima portuguesa, seu livro de cabeceira; mas merecia ser lido.

Sobretudo pelo tema da subjetividade, visceral nesse livro. Eu mesmo creio que a invenção da ideia de voz interior, tão importante para a literatura, deve imenso a Defoe e a esse seu livro, senão mesmo ao marinheiro escocês Alexander Selkirk, náufrago perdido numa ilha deserta durante quatro anos e cujo relato constitui a base do Crusoé.
Defou habitou 95 Stoke Newington Church Street, Stock Newington. Coloquei no GPS, no Maps, no Bus Time London, no City Map e no Waze. Hora e meia só para chegar. Errei o caminho, me perdi. Voltei e comecei de novo. Não desanimei porque errar pelas cartografias constitui a essência dos náufragos, inclusive dos náufragos da literatura.
Finalmente encontrei o que, há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, foi a casa onde morou Defoe. Hoje, só resta uma plaquinha. Tempo perdido? Claro que não.
Prossigo, na mesma ordem temporal de minha lista de autores, até 110 Chiswick Lane South, Chiswick, endereço onde viveu Alexander Pope (1688-1744). Passei de ônibus à frente desse distante endereço e o dei por visitado, porque estava a caminho da casa de Fielding, vindo de Hammersmith e tinha pressa. De resto, depois da decepção quanto a casa de Defoe, já imaginava que só ia ver uma plaquinha.

Mas isso não desabona Pope. Aliás, tenho certa tendência a me identificar com Pope, simplesmente por afetividade em relação ao seu espírito satírico. Não que me veja assim, mas não que não me veja, igualmente. E, ademais, tem sua hostilidade ao mundo, devida talvez ao que sofreu por ser cristão, ou por seus problemas de saúde. Sempre achei que Pope representava o triunfo da palavra… sobretudo da que quase-foi-dita.
Um dos livros mais ferozes que li foi The Rape of the Lock (O rapto da Madeixa), publicado em 1712, no qual Pope ridiculariza o esnobismo, a galanteria, a frivolidade dos que se sentem superiores. Sempre achei que esse livro deveria ser reescrito por alguém a cada 50 anos, pelos menos, para seguir desconstruindo as assertivas de classe que justificam toda a exclusão social. Recordo que minha avó Maria Vera me deu esse livro de presente, comprado no sebo de Eduardo Failacce, quando fiz 12 anos de idade, recomendando que eu lesse as entrelinhas:
“Na verdade, não é de Helena de Troia que estão falando, e nem mesmo de uma mecha de cabelo”.
Hoje percebo que Pope foi um dos grandes mestres da literatura satírica, mas também um dos grandes mestres da tradução da literatura clássica. Nele, o passado confronta o presente, perfazendo o ridículo, o burlesco, a sátira. Não há paralelos em língua portuguesa, mas há um eco de Pope em Machado de Assis, creio, justamente nessa relação passado-presente…
Prossigo até Milbourne House, Barnes Green, onde viveu Fielding. Como disse, estava a caminho de lá.

Henry Fielding (1707-1754), o li na edição vermelha de uma série de clássicos da editora Abril: Tom Jones. Primeiro vi o filme, que passava na televisão ao acaso de nossas vistas e interesse, na companhia do primo Marcelo, pré-adolescentes, e lembro de como rimos das aventuras de Tom Jones. O nome virou um xingamento, nos dias seguintes e meu pai acabou me perguntando porque é que eu estava chamando de Tom Jones um vira-latas que desejava ardentemente copular com a bem protegida cadela do vizinho. Mencionei o filme e meu pai me ofereceu o livro. Achei-o imenso e com letras miúdas, e o li aos pulos, mas me divertindo. Custava a crer que alguém do século XVIII tinha escrito aquelas porcarias, aquelas safadezas, e mais à frente comentei com o primo Marcelo: esses ingleses eram muitos safados, será que hoje fingem?
Referia-me à ideia que fazíamos, então, do povo inglês, certamente não herdeiro de Jones – e nem de Fielding, tampouco.
Fábio Horácio-Castro
Os textos da série O Viajante Literário em Londres saem neste blog todas as quartas-feiras a noite.